Tecnologia

No acordo entre Google e Spotify, o diabo está nos detalhes — ou na falta deles

Google e Spotify anunciaram uma parceria plurianual, a primeira do tipo, para permitir que o aplicativo Android do streaming de música aceite outros tipos de pagamento além do Google — hoje a única opção. Pelos detalhes, ou a falta deles, a sensação é de que se trata mais de uma peça de relações públicas, para acalmar reguladores, do que algo concreto. Os termos do acordo são vagos e deixam espaço para muitas dúvidas. 

As duas empresas não citam quando, onde, nem quanto isso vai custar ou deixar de custar ao Spotify e aos usuários. No comunicado à imprensa do Spotify, lemos coisas como “até o fim do ano”, “em países ao redor do mundo”.

O acordo com o Spotify é parte de um projeto piloto do Google, a ser estendido a um pequeno número de desenvolvedores, para “oferecer uma opção de cobrança adicional ao lado do sistema de cobrança do Google Play”. O objetivo, diz a vice-presidente Sameer Samat, é ajuda o Google a explorar maneiras de oferecer esta opção aos usuários “mantendo a capacidade de investir no ecossistema”.

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O movimento pode ser visto como uma antecipação, ainda que um pouco tardia, às pressões crescentes de órgãos reguladores do mundo inteiro para que Apple e Google abandonem a exclusividade que garantem a si mesmos para processar pagamentos de itens e assinaturas digitais feitos em suas plataformas, Android e iOS.

Embora ganhe menos destaque que a Apple, o Google também sofre pressão nessa frente. Sua loja de aplicativos, a Play Store, cobra entre 15% e 30% desses pagamentos, percentual que muitos aplicativos — incluindo o Spotify — consideram injusto.

Apple e Google já são obrigadas a oferecer meios de pagamento alternativos na Coreia do Sul, por exemplo. Na Holanda, a Apple foi obrigada a permitir que aplicativos de namoro ofereçam meios de pagamento próprios.

Essas experiências locais nos ajudam a antever o que poderá sair desse programa piloto anunciado com o Spotify e o cenário não é dos mais animadores.

Na Coreia do Sul, segundo o Wall Street Journal, o Google ainda cobra uma taxa de 26% dos aplicativos que se vendem via sistemas de pagamento alternativos. Na Holanda, a Apple quer cobrar 27%, em vez dos 30%, para o mesmo arranjo com os aplicativos de namoro. As autoridades do país não ficaram satisfeitas com a proposta e seguem multando a Apple em cerca de € 5 milhões por semana. A Apple não demonstra pressa nem interesse em agradar os holandeses.

LEIA TAMBÉM: Com empurrão das plataformas de streaming, venda de música atinge US$ 26 bi em 2021

No programa piloto de Google e Spotify, o Google receberá um percentual das transações feitas por fora da Play Store. Quanto? As empresas não revelam. Uma porta-voz do Spotify limitou-se a dizer que “negociamos termos comerciais alinhados aos nossos padrões de justiça”.

Essa queda de braço entre plataformas (Apple e Google) e desenvolvedores coloca em xeque o que essa virada de ventos representaria para o mercado de aplicativos e, em especial, para o usuário final — a decisão, no fim, estará nas pontas dos dedos dele.

Solução vai além de regras e arranjos; tem a ver com a experiência do usuário

E aí, cabe o questionamento: por que uma pessoa usando o Android ou o iOS preferiria recadastrar seus dados direto no Spotify, por exemplo, em vez de pagar a assinatura com um toque usando os sistemas da Apple e do Google?

Além de mais conveniente, os sistemas próprios de Apple e Google nos livram de inserir e armazenar os dados do cartão em cada aplicativo com que transacionamos e, no caso das assinaturas, permitem cancelá-las com um toque, facilidade que não é garantida fora das lojas de aplicativos. (No Spotify isso é bem fácil, mas tente cancelar a assinatura de um jornal, por exemplo, assinado por fora das lojas; é um inferno.)

O pedágio das lojas de aplicativos é ruim, injusto e deveria acabar. Em termos práticos, porém, o grande chamariz para sistemas de pagamentos alternativos é o desconto — um desconto que, nos arranjos em vigor e nos propostos, parece não ter mais espaço.

Quando os próprios aplicativos processam pagamentos, arcam apenas com as despesas da operação, de menos de 3% em média. É bem menos que os 15%–30% que Apple e Google cobram hoje para fazer o mesmo trabalho.

Não precisa ser um gênio da matemática para perceber que, caso a Apple e o Google consigam emplacar a cobrança de 26% ou 27% em cima de pagamentos feitos em sistemas que não os seus, tudo muda e nada muda ao mesmo tempo, com uma possível piora da experiência do usuário e, pior, sem qualquer desconto. 

O diabo está nos detalhes e os poucos que vimos até agora são preocupantes.

This post was last modified on março 24, 2022 7:42 pm

Rodrigo Ghedin

Rodrigo Ghedin is a communicologist and a journalist. He is also the founder and editor of Manual do Usuário, a “slow web” technology blog.

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