A carteira não escapou da digitalização. Na transição dos nossos bolsos e bolsas para a o ambiente virtual, materializado pelo celular, as carteiras se multiplicaram: hoje, no Brasil, centenas delas são oferecidas por empresas dos mais diferentes ramos, das óbvias instituições financeiras até restaurantes, varejistas e para aplicações bem específicas.
A profusão de carteiras digitais, também chamadas “digital wallets”, reflete a maturidade da digitalização do sistema financeiro no país e, ao mesmo tempo, a ausência de regulação do modelo, o que permitiu que as empresas avançassem em serviços financeiros de maneira mais livre. A explicação vem do Banco Central, órgão responsável por regular e supervisionar as atividades financeiras no país: “Essas entidades [que oferecem carteiras digitais] não estão sujeitas à regulamentação e supervisão do Banco Central e, portanto, não nos compete definir o modus operandi delas”, disse João André Calvino Marques Pereira, chefe do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central.
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A ausência de regulação tem outro efeito no produto: a dificuldade em defini- lo. O que é, exatamente, uma carteira digital? Mesmo gente do mercado, como Rodrigo Knudsen, gestor da Vitreo, diz que a explicação não é simples. Há, porém, algumas características que se repetem nas falas das diversas fontes consultadas, como a não obrigatoriedade do envolvimento de bancos tradicionais. “É um jeito de [as empresas] trabalharem o dinheiro das pessoas sem ter que ir para o banco”, diz Knudsen. “Dada toda a tecnologia e o ambiente digital, a empresa consegue ganhar mais dinheiro e o cliente, mais eficiência não tendo que passar nas grandes taxas dos bancos”.
“A gente vê esse termo [carteira digital] sendo usado de múltiplas maneiras”, explica Ury Rappaport, co-fundador da Swap, startup que permite que outras empresas criem fintechs a partir de produtos white label, ou seja, com suas próprias marcas.
O executivo diz que o conceito de carteira digital tem evoluído rapidamente. Nos primórdios, ela era apenas um meio digital de armazenar informações de pagamento, como cartões de débito e crédito (“muito parecido com uma carteira convencional”, diz Rappaport), conceito que João André corrobora ao acrescentar que a carteira digital tem como principal vantagem permitir ao cliente “realizar rapidamente e com segurança compras e transferências financeiras”.
Entram aí serviços pioneiros do setor financeiro, como o PayPal e seus rivais mais novos (PicPay, Mercado Pago), e as soluções de grandes plataformas móveis globais — Apple Pay, Samsung Pay e Google Pay.
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No processo evolutivo das carteiras digitais, “começou a acontecer uma extrapolação do conceito”, prossegue Ury. “Foi quando a carteira parou de ser um aglutinador de cartões e virou um estacionamento de dinheiro. Você podia deixar dinheiro na carteira, não só puxá-lo do cartão”.
Esse movimento deu origem a contas intermediárias, com crédito que poderia ser usado no pagamento de serviços e/ou produtos da empresa que fornece a solução bem como de parceiros, ou até mesmo para retirada e outros tipos de uso mais líquidos. Foi quando apareceram as carteiras digitais de empresas que não atuam primariamente no setor financeiro, como iFood, 99, B2W (Ame) e Magazine Luiza, e as especializadas, como a TruckPad Pay, que traz facilidades à relação entre transportadoras e motoristas de caminhão. “Existe um interesse das empresas em facilitar o financeiro e as operações financeiras para seus clientes”, diz Raquel Santos, empreendedora e mentora de empreendedores na gestão financeira.
“No final das contas”, resume Ury, “se a gente for olhar hoje depois de toda essa história, o que é uma ‘digital wallet’? É quase uma conta corrente ‘branded’ [de marca] de uma instituição que não é tão tradicional. Quase uma conta corrente light”. E se hoje já existem muitas delas, a tendência é que esse número siga aumentando em ritmo forte.
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“Já fomos procurados por funerárias”
Ury Rappaport e seu sócio, Douglas Storf, são egressos da 99, startup de mobilidade brasileira comprada em 2018 pela chinesa Didi. No início de agosto, a 99 lançou o 99Pay, sua carteira digital. Foi a realização de um plano antigo, que data do tempo em que a dupla hoje à frente da Swap trabalhava lá — Rappaport como gerente geral de pagamentos, Storf como diretor de serviços financeiros.
“Na época da 99, a gente testou todo mundo que fazia carteira digital, ‘bank as a service’ (Baas), cartão, e achamos tudo muito ruim”, recorda Rappaport. “Essa fintech da 99 que lançaram agora, a gente tentou fazer em 2018. Só que a grande questão foi que tudo que testamos deu errado, porque os serviços eram muito ruins”. Apesar do trauma, o episódio gerou a ideia de uma nova startup, a Swap, que tenta fazer esse meio campo de uma maneira melhor.
Estima-se que já existam no Brasil mais de 600 carteiras digitais sendo ofertadas ao público. Pode parecer muito, mas para a Swap esse mercado é incipiente e muitos negócios, de diferentes portes, ainda poderão se beneficiar do modelo. “Não é um modismo, uma coisa nichada; é tipo como você falava antigamente ‘cara, lance um app ou lance um site’. É como se todo negócio que é relevante pudesse alavancar seu próprio ecossistema e criar uma fintech para ficar muito melhor”, diz o executivo. “Quando se fala que tem 600 wallets [no Brasil] hoje, é muito pequeno ainda, é o comecinho do comecinho. Uma revolução está acontecendo”.
Embora exista desde 2018, somente agora a Swap se revelou ao mercado. Diferentemente de outras startups, explica Ury, que já começam com uma solução minimamente funcional no ar, essa área requer capital intensivo (entre US$ 3 milhões e US$ 5 milhões) e muito trabalho de base (cerca de 2–3 anos) antes de começar a operar de fato. Em julho de 2020, a Swap levantou US$ 3,3 milhões em investimento seed de um grupo de investidores liderados pela gestora brasileira ONEVC.
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A Swap fornece serviços financeiros a empresas de outros setores com uma oferta maleável que desponta como um meio termo entre soluções mais genéricas (de empresas como Stone e Linx) e as super específicas, e que, em muitos casos, não fazem sentido para empresas de menor porte. “A gente tem uma proposta de valor que é meio única, que é focar em trazer aceso a essa indústria”, diz o executivo. E ele acredita que essa proposta tem um poder de alcance enorme. “Já fomos procurados até por funerárias”, exemplifica.
Embora não revele números de faturamento ou de clientes, Rappaport comenta três deles para ilustrar a variedade de cenários em que uma carteira digital pode ser operada: a Zero Um, um app de finanças focado no público adolescente; a Clickbus, maior plataforma de compra de passagens de transporte terrestre do país; e a Leadr, uma espécie de rede social dentro da plataforma da XP. Todas as soluções da Swap são white label, ou seja, aparecem somente com a marca do cliente, sem a da Swap, ao usuário final.
Se do lado das empresas as vantagens são evidentes, o consumidor final talvez fique atordoado com a quantidade de carteiras disputando um espaço na tela do seu celular — e como colchão para guardar uns trocados atualmente na conta de um banco ou debaixo de um colchão de verdade.
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Ury, da Swap, acredita que o potencial da transformação digital do setor financeiro no Brasil é tão grande que há espaço para todos, bancos, fintechs e empresas que queiram oferecer suas carteiras digitais, e que essa também é uma oportunidade de cada segmento focar em seus pontos fortes. “Os bancos estão passando por um momento de transformação, mas existe uma reflexão para ser feita: será que eles deveriam competir com as fintechs? Ou deveriam focar na proposta de valor ‘core’ deles, que é gestão de risco? Ao fazer isso muito bem, você tem uma infinidade de produtos a oferecer, inclusive para fintechs, em parceria”, sugere.
A opinião não é unânime. Alexandre Amorim, gestor de investimentos e planejador financeiro na ParMais, acredita que os fortes incentivos, como cashback generoso e troca de vantagens pela indicação de novos clientes, sinalizam uma corrida das empresas para capturar mais clientes antes das rivais, a fim de se valorizarem e consolidarem mercado ou, alternativamente, serem vendidas para outra empresa maior. Justamente por isso, é uma boa ideia pensar duas vezes antes de criar um novo cadastro em qualquer carteira digital. “Quanto mais contas ou meios de gerar crédito ou obrigações de pagamento você tiver”, previne, “mais fácil se perder — e isso é um problema”.
Tem Pix na carteira digital?
As carteiras digitais oferecidas por instituições de pagamento, ou seja, aquelas que oferecem uma conta de pagamento pré-paga por meio da qual seus clientes podem movimentar recursos de e para essa conta, são compatíveis com o Pix, diz Angelo José Mont Duarte, chefe do Departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro do Banco Central. “Para isso, essa instituição de pagamento (‘carteira digital’) deve solicitar adesão ao Pix”, diz ele.
A versão mais atualizada da lista de participantes em processo de adesão ao PIX, de 14 de setembro, trazia 935 instituições, entre elas algumas carteiras digitais, como PayPal, PicPay e Mercado Pago.