Uma das determinações do Digital Markets Act (DMA), a nova lei europeia gestada com o objetivo de conter o poder da big tech e restabelecer a competitividade no setor, e que deve entrar em vigor no fim de 2022, é a exigência de interoperabilidade entre aplicativos de mensagens das empresas enquadradas como gatekeepers, aquelas com valor de mercado superior a € 75 bilhões ou que tenham faturamento anual de € 7,5 bilhões ou mais na União Europeia.
O texto final do DMA ainda não é público, então sobram especulações. Um suposto trecho vazou no Twitter. Ele ajuda a jogar um pouco de luz na discussão. As empresas gatekeepers que operam aplicativos de mensagens terão de:
- Permitir que qualquer provedor (de aplicativos de mensagens), sob seu requerimento e sem custo, de se interconectarem com os aplicativos de mensagens dos gatekeepers (as grandes empresas).
- A interconexão deve ser oferecida objetivamente sob as mesmas condições e qualidade que estão disponíveis ou são usadas pelo gatekeeper, suas subsidiárias ou parceiras, assim permitindo uma interação funcional com esses serviços, ao mesmo tempo em que garante um alto nível de segurança e proteção de dados pessoais.
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A nova obrigação representa um revés enorme à big tech, em especial à Meta e à Apple, donas dos três maiores aplicativos afetados pela mudança — WhatsApp, Messenger e iMessage.
Will Cathcart, que lidera o WhatsApp dentro da Meta, reclamou da determinação do DMA no Twitter e em uma entrevista a Casey Newton, da newsletter Platformer.
Pelas suas falas, a imposição europeia soa como se fosse uma espécie de abertura da caixa de Pandora: ela gerará um aumento do spam, da desinformação e do discurso de ódio. Alguém desatento que lesse isso poderia concluir que, hoje, no modelo fechado, esses conteúdos e comportamentos deploráveis não existem dentro do WhatsApp. Sabemos que não é o caso.
Cathcart também afirma que a interoperabilidade comprometerá a criptografia de ponta a ponta do aplicativo, o que é, de fato, uma preocupação de partes independentes e que, para que não ocorra, demandará muito trabalho.
É curioso, porém, que a criptografia de ponta a ponta é menos sagrada ao WhatsApp quando interesses da empresa estão em jogo. Como quando o aplicativo atualizou sua política de privacidade, no início de 2021, para permitir que contas comerciais que terceirizam a comunicação pelo aplicativo pudessem iniciar conversas que não são criptografadas de ponta a ponta.
Ou em 2018, quando Mark Zuckerberg, CEO da Meta, anunciou que os três aplicativos de mensagens da empresa — WhatsApp, Instagram Direct e Messenger — seriam interoperáveis e teriam criptografia de ponta a ponta. A proposta foi recebida com estranheza e tida como um artifício para dificultar uma possível divisão da empresa por determinação de órgãos reguladores. Agora, vem bem a calhar.
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Nada disso quer dizer que os desafios técnicos são fáceis. Mesmo quem está no polo oposto ao da big tech concorda que abrir os aplicativos de mensagens da big tech será um trabalho grandioso.
Matthew Hodgson, co-fundador do protocolo Matrix, um sistema de mensagens descentralizado, aberto e criptografado de ponta a ponta, reconheceu as dificuldades em um post de blog. Ainda assim, classificou o consenso em torno do DMA como “uma notícia inacreditavelmente boa para a internet aberta”, incluindo a obrigação aos gatekeepers de fornecerem APIs abertas a seus serviços de comunicação.
Iniciativas como o Matrix e o XMPP são provas funcionais de que é possível ter protocolos abertos com a mesma segurança e privacidade das soluções fechadas. E se elas, com financiamento enxuto e pouca gente trabalhando, conseguem, um titã de US$ 600 bilhões e os melhores programadores do mundo também. O que falta é motivação. Agora, tem, ainda que provocada por uma força externa.
Especialistas em criptografia e segurança digital apontam dois caminhos possíveis, considerando a falta de detalhamento da obrigação do DMA no momento, para viabilizar uma interoperabilidade que preserve a criptografia de ponta a ponta:
- A criação de pontes (“bridges”) entre os sistemas, rodando nos dispositivos dos usuários, que seriam responsáveis por descriptografar e criptografar novamente as mensagens trocadas entre diferentes sistemas;
- Ou a adoção de um protocolo padrão, como o Double Ratchet do Signal, o Megolm do Matrix ou o OMEMO do XMPP, que permita a todos os aplicativos falarem a mesma língua cifrada.
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Outra curiosidade: o Facebook Messenger, nos seus primórdios, usava o XMPP. Mesmo caso dos aplicativos de mensagens do Google. A ânsia de prender os usuários em jardins murados levaram essas empresas a adotarem protocolos proprietários, fechados, que travam a inovação e limitam as opções dos consumidores.
Por mais complexa que seja do ponto de vista técnico, a determinação europeia acerta no âmbito concorrencial. Hoje, ninguém escolhe aplicativo de mensagem por preferência pessoal; é pelo tanto de pessoas próximas que estão em um ou outro ou por necessidades profissionais.
Ao tratar aplicativos de mensagens como o e-mail, garantido o mesmo nível de segurança e privacidade dos padrões fechados, o consumidor volta a ter poder de decisão num setor vital e empresas entrantes passam a poder competir em pé de igualdade com as gigantes.