O mercado de tecnologia da informação (TI) nunca esteve tão aquecido na América Latina. Além de sobrarem vagas em países como o Brasil, há uma nova tendência favorecendo esses profissionais: empresas estrangeiras que buscam profissionais para trabalho remoto na região pagando salários em dólar ou euro.
Latino-americanos ganham em média 2,2 vezes mais trabalhando para empresas de fora do que para empresas de seus próprios países — US$ 26,4 mil contra US$ 12 mil, respectivamente.
Em alguns cenários, a diferença é ainda maior, a depender do país em que o funcionário está baseado, sua experiência e o país do empregador. Em empresas norte-americanas, por exemplo, a diferença média é de 3,3 vezes para salários locais. E em países que sofrem com a desvalorização de suas moedas, como Guatemala, Brasil e Argentina, os saltos são maiores — 3,4, 3 e 2,8 vezes, respectivamente. O múltiplo do salário remoto em relação ao local pode chegar a 4 vezes.
Esses resultados constam em um levantamento realizado com 1.354 profissionais da América Latina, quase metade deles (46,5%) empregada em empresas estrangeiras, feito pela Arc, uma consultoria especializada em agenciar trabalhadores de TI para vagas remotas.
Ao LABS, JC Alarcon, gerente de marketing da Arc, explicou os motivos da disparidade salarial: “Com o financiamento abastecendo startups nos EUA e Reino Unido, a demanda por desenvolvedores disparou. Entretanto, os talentos continuam em falta. Naturalmente, as empresas de tecnologia começaram a procurar talentos não importa onde eles morem, incluindo a América Latina.”
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, custos supostamente menores não são o principal motivador para que as empresas de fora recorram à América Latina. “Descobrimos que a maioria das empresas que contratam pela nossa plataforma valorizam a experiência profissional como fator prioritário na hora de recrutar talentos”, disse Alarcon. “Com o trabalho remoto acelerando na pandemia, as empresas estão cada vez mais abertas a contratarem grandes desenvolvedores de qualquer lugar para estancarem a falta de talentos.”
Apesar disso, o salário pago em moeda local, em regra menor que os pagos em dólar ou euro e convertidos para serem gastos na América Latina, tem sim um peso relevante nessa disputa por talentos em escassez no mercado.
A Intera, startup de recrutamento digital brasileira, perguntou para engenheiros back-end de diferentes níveis de experiência os principais fatores que os levariam a desistir de uma vaga de emprego. A disparidade entre salário oferecido e pretensão salarial foi um dos fatores mais citados (13,75% dos casos), e as disparidades entre expectativa e realidade chegaram a 90,7% — caso dos candidatos plenos, que querem ganhar até R$ 11 mil, mas topam com vagas que pagam em média R$ 8,3 mil.
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Há um último aspecto a ser considerado, o mais amplo, que é o dos efeitos dessa “fuga de cérebros” — termo que se adequa melhor a essa situação que à das migrações, já que os “corpos“ dos profissionais continuam em seus países de origem —, que é o impacto nas empresas, tanto as locais, que ganham concorrentes com mais dinheiro para investir em salários, quanto as estrangeiras, que ampliam enormemente o leque de potenciais contratações.
Questionado, Alarcon reconhece que “os efeito da terceirização do trabalho para fora é complexo e seu impacto em larga escala ainda não é totalmente conhecido”, mas ressalta que a expansão geográfica é benéfica tanto às empresas quanto aos profissionais.
E para as empresas latino-americanas, muitas vezes incapazes de igualar o salário oferecido pelas estrangeiras, a saída é apostar em benefícios para conquistar e reter talentos locais. “[Salários] não são tudo; eles [profissionais] consideram também outros fatores, como a cultura da empresa, sua missão e benefícios”.
Horários flexíveis e plano de saúde, por exemplo, são benefícios que as empresas costumam oferecer a trabalhadores remotos, de acordo com outra pesquisa da Arc. Por isso, “deveriam ser considerados um mínimo em 2022”, aconselha às empresas locais.
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O outro lado: o dos desenvolvedores
O LABS conversou com quatro desenvolvedores brasileiros que trabalham para empresas estrangeiras, para tentar entender o que os motivou a buscarem esse tipo de emprego.
Matheus Fantinel, 26 anos, de Caxias do Sul (RS), já trabalhou para quatro empresas de fora desde julho de 2019. Atualmente, ele presta serviços para duas — por questões contratuais, não pode dizer quais, mas jura que são lícitas. Ele recebe quatro vezes mais do que recebia quando trabalhava para uma empresa brasileira, mas lembra que nem sempre foi assim e que a senioridade conta muito para que essa diferença seja relevante: “De início a diferença não foi tão grande assim, pois eu era CLT antes, e para o exterior é sempre na modalidade ‘PJ’. No salário líquido, a diferença entre meu salário de sênior no Brasil e de júnior remoto era de cerca de 50%.”
Para Henrique Bispo, 26 anos, de Belo Horizonte (MG), o salto salarial foi parecido, de quase quatro vezes (285%). Desde maio de 2021, ele trabalha para a BairesDev, empresa argentina de outsourcing de TI, e através dela foi alocado para a Refersion, empresa norte-americana de software para gerenciamento de marketing de afiliados.
Henrique reconhece que o salário é um fator decisivo, mas também o modelo de contratação: “O salário com certeza é o que mais pesa, mas também o modelo de contratação ser CLT. Para trabalhar ‘PJ’, prefiro trabalhar pra fora mesmo.”
Embora seja tendência, o movimento de terceirização não é exatamente novo. Igor Santos, 31 anos, do Rio de Janeiro (RJ), trabalha assim desde 2015. De lá para cá, seu salário cresceu 561% — no mesmo período, a inflação no Brasil foi de 41%.
Igor entrou nesse mercado pela Toptal, uma empresa de freelancing, e continua nela. Está alocado na eHungry há quatro anos, uma plataforma de e-commerce voltada a restaurantes e baseada em Raleigh, na Carolina do Norte, Estados Unidos.
A exemplo de Henrique, Igor também atribui grande peso ao salário e ao fato de o modelo de trabalho ser remoto, mas não só. Para ele, a jornada flexível e limitada a 30 horas semanais, o ambiente saudável, sem pressões exageradas e os desafios, sempre novos, fazem o trabalho na eHungry ser de “um conforto inigualável”.
“Se surgir uma empresa brasileira, remota, com formato de trabalho tranquilo, e que me pague mais do que eu recebo, talvez eu aceitasse”, diz. Ele não acredita que isso vá acontecer, porém, e chegou a desativar seu LinkedIn para livrar-se do assédio dos recrutadores, nacionais e de fora, mas que lhe oferecem sempre cargos com salários bem inferiores ao que recebe. “O projeto pode ser o mais revolucionário do mundo, não tem como competir com o conforto financeiro que tenho atualmente.”
Veterano da turma, Rafael Goulart, 49 anos, de Santa Maria (RS), começou a transição para trabalhos remotos para empresas estrangeiras em 2012, a partir de colaborações voluntárias para um projeto de software livre. Atualmente, trabalha no time interno da ScalablePath, uma empresa de terceirização de desenvolvimento baseada em São Francisco, na Califórnia.
Para Rafael, há um elemento ausente nas comparações de salário comumente feitas, mas de suma importância: “É praticamente impossível conseguir no Brasil uma renda como a que tenho agora como programador. Teria que ascender a cargo de coordenação/chefia. O nível de estresse e responsabilidade não compensaria.”
Ele incentiva que desenvolvedores latino-americanos tentem trabalhar para empresas de fora. “Somos ‘baratos’, ao mesmo tempo em que nosso rendimento fica bem acima da média”, justifica. “Moro numa cidade de médio porte, pequenas distâncias, custo de vida razoável. Enfim, é uma boa perspectiva de carreira.”
Rafael faz duas ressalvas: o plano de aposentadoria, que é inexistente e passa a depender do próprio profissional, e as chances de eventos inesperados ocorrerem. “Há sempre a possibilidade de uma guerra esculhambar tudo.”
Planejamento é uma característica imprescindível, pois o profissional que trabalha para fora precisa lidar com burocracias e cuidados que costumam ser tratadas por departamentos específicos em empresas locais. Além de, claro, a volatilidade do câmbio.
“Comecei o ano sorrindo, com [o dólar a] R$ 5,70, e atualmente já perdi quase 20% do meu pagamento com a queda”, diz Igor. “Se você tem ‘medo’ de instabilidade financeira e não tem noções básicas de organização, melhor negociar um salário em reais com seu chefe gringo ou continuar no mercado nacional.”
Há, ainda, uma preocupação compartilhada pelos profissionais relacionada aos impactos dos seus empregos no ecossistema do país onde vivem. Se por um lado a contratação por empresas estrangeiras injeta dinheiro de fora na economia local e gera recolhimento de impostos, por outro exacerba um tipo peculiar de “fuga de cérebros”.
“Eu gostaria muito que a minha mão de obra gerasse algo de bom pro país onde moro, e não pra outro lugar”, diz Matheus. “Se a diferença não fosse tão discrepante (e fosse até uns 20%, imagino), acho que iria preferir trabalhar para empresas daqui (ainda de home office, porém).”