Operários trabalham na manutenção de antenas da Huawei. Foto: Huawei/Divulgação
Tecnologia

Os EUA devem deixar a Huawei trabalhar em paz?

País e fabricante estão em uma delicada partida de xadrez – e os países da América Latina são peças bastante valiosas

Read in english

A fabricante Huawei é a líder mundial em infraestrutura para telecomunicações. Isso significa que a companhia possui a mais ampla cobertura de antenas, cabos e equipamentos transmissores e receptores de sinal de internet móvel, algo especialmente valioso com o início da implementação do 5G, a nova geração de conectividade móvel, no mundo.

O problema é que a gigante chinesa não enfrenta apenas a concorrência de outras companhias do ramo, mas também uma rivalidade política com o governo dos Estados Unidos, que proíbem grande parte da atividade da marca em seu território e também pressionam aliados a não fecharem novos acordos com a empresa. Mas, afinal, o que pesa contra os chineses nesse conflito? Países que mantêm relações comerciais com os EUA devem ceder à pressão e deixar de lado eventuais negociações com a Huawei?

LEIA TAMBÉM: O fenômeno Free Fire no Brasil

Troca de farpas

A lista de acusações contra a Huawei não é curta e nem mesmo recente. A empresa é suspeita de instalar vulnerabilidades em suas próprias redes para permitir espionagem internacional a mando do governo chinês, além de roubar patentes e segredos industriais de rivais ocidentais e burlar proibições comerciais.

Ou seja, a briga com a empresa vai além do que a existente contra a China em si, que envolve taxas sobre matérias-primas e ainda deve durar um bom tempo, mesmo com sinalizações de acordos comerciais. E outro tópico importante surge nessa questão: afinal, há evidências de que os chineses de fato usaram a marca como canal de espionagem?

Ao menos por enquanto, nada que de fato comprove a participação da Huawei nessas práticas, ou que mostre que seus equipamentos permitem a interceptação de informações por parte de autoridades locais, foi publicamente divulgado. As únicas provas aparentes são documentos obtidos pela agência de notícias Reuters, que comprovariam que a Huawei comercializou produtos de origem norte-americana com operadoras do Irã — algo que vai de encontro às sanções dos EUA contra o país.

LEIA TAMBÉM: Teste rápido para Covid-19 produzido por startup brasileira será oferecido em abril

O governo norte-americano afirma que compartilhou informações mais específicas das acusações com Reino Unido e Alemanha, em uma tentativa de convencer os aliados a não deixarem a Huawei atuar nas telecomunicações locais. Entretanto, ambos não viram problemas em integrar os chineses nas negociações do 5G — com acesso restrito às redes e desenvolvimento paralelo de procedimentos de segurança, como criptografia e monitoramento constante. Ou seja, eles não se intimidaram com a pressão norte-americana e avaliaram de forma prática a situação.

Pesa ainda contra os norte-americanos os contra-ataques da companhia. Em fevereiro, a empresa rejeitou novas acusações publicadas pelo jornal The Wall Street Journal e, como resposta, afirmou que são os próprios Estados Unidos que possuem o histórico de acessar a infraestrutura de outros países para espionagem — algo provado pelas denúncias de Edward Snowden em 2013 envolvendo a Agencia de Segurança Nacional (NSA), por exemplo.

Em outras palavras, não é possível confiar integralmente na imagem de inocência da empresa, mas a falta de transparência dos EUA não ajuda nesta situação.

A outra frente de batalha

A guerra comercial contra a Huawei não se resume aos mercados de 5G. Na verdade, o setor em que a fabricante mais terá prejuízos é o de dispositivos móveis, mais precisamente em celulares. Como parte das proibições de negociação envolvendo empresas norte-americanas e chinesas, a marca foi proibida de utilizar o ecossistema de aplicativos da Google em seus aparelhos. Além disso, o fornecimento de peças e outros componentes de empresas norte-americanas também foi cortado.

Ela até possui uma solução caseira em desenvolvimento, chamada de Harmony OS, mas por enquanto optou por uma versão em código aberto do Android sem os principais serviços instalados. Na China, redes sociais norte-americanas e outros softwares ocidentais são banidos por padrão e substituídos por alternativas regionais, mas mudar o pensamento de outros mercados de que Google Maps ou Gmail são dispensáveis não é tarefa fácil. Segundo o The Information, a Huawei prevê uma queda de ao menos 20% nas vendas de celulares em 2020 caso a proibição seja mantida.

O Mate 30 Pro traz a versão de código aberto do Android 10 com a sobreposição EMUI 10 da Huawei. Não há aplicativos ou serviços do Google nele. Foto: Huawei/Divulgação.

Fora da Ásia e da Europa, as atividades da companhia em eletrônicos têm reduzido: cada vez menos celulares novos são apresentados na região, com a preferência de lançamentos sendo por outros eletrônicos, como smartwatches e fones de ouvido.

O tabuleiro da América Latina

Voltando ao caso do 5G e do setor de infraestrutura, as grandes concorrentes da Huawei no setor nem sequer são estadunidenses: a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia completam o topo desse mercado. Ou seja, enquanto o banimento de uso de peças e serviços para eletrônicos é uma medida protecionista que favorece fornecedoras nacionais, a questão do 5G é muito mais política do que comercial.

Até agora, a Colômbia já avisou que vai seguir normalmente com o planejamento original, que inclui os chineses e os mexicanos da América Móvil como interessados. Além disso, o Brasil prepara o “maior leilão de 5G do mundo”, um processo que já está bastante atrasado e que vai envolver a Huawei ao menos como uma das concorrentes. A decisão de deixar ou não a empresa concorrer como uma das interessadas em cuidar da infraestrutura foi confirmada recentemente e não restringe a participação de possíveis interessadas. A chinesa não só já está realizando testes com operadoras, como tem se especializado nos últimos anos também em redes para localidades rurais e de pequenas operadoras — uma experiência que pode ser valiosa em regiões com menos infraestrutura.

E a discussão no Brasil era, de fato, complicada, envolvendo mais de um setor do governo.  De um lado, o “conselho” dos EUA afirmando que é melhor manter a companhia fora dos planos do 5G, inclusive com ameaças de não cumprimento de acordos futuros em outros setores, a exemplo do que representantes do presidente Donald Trump já sugeriram a respeito de cooperações no setor de Defesa com o Brasil. De outro, a possibilidade de um bom negócio com uma companhia capaz de entregar o que é necessário, mas com o peso de suspeitas. É preciso avaliar com igual desconfiança o interesse por trás de ambos os lados.

LEIA TAMBÉM: Os latino-americanos estão em um relacionamento sério com os apps de namoro

Os países da América Latina com relações próximas aos EUA precisam fazer uma escolha difícil, ainda mais sem ter o acesso a todas as informações necessárias para que ela seja tomada. Sem comprovações sobre espionagem etc, a Huawei deve no mínimo ser considerada nos leilões de frequências. Na partida de xadrez entre o país e a fabricante, não há, ao menos por enquanto, indícios de que algum dos lados vai aplicar um xeque-mate. Mas impedir um dos lados de fazer o próximo movimento não parece a melhor escolha para acelerar essa partida.