Na condição de leitor, fiquei paralisado diante da quantidade de reportagens publicadas desde a última sexta-feira (22) com base nos documentos vazados pela ex-funcionária do Facebook Frances Haugen sobre a empresa, um esforço coletivo da imprensa batizado de “Facebook Papers”. É muita coisa. Dias depois, ainda estou me inteirando das revelações.
Fernando de Barros e Silva, jornalista e apresentador do podcast Foro de Teresina, cita alguém que me foge o nome, quase toda semana, ao introduzir o assunto Brasil: “Há coisas boas e coisas novas, mas as coisas boas não são novas, e as novas não são boas.” Lembrei dessa frase enquanto lia as reportagens do Facebook Papers.
Apesar do detalhamento das situações, dos diálogos internos e tudo mais, materiais importantes para entender as entranhas de uma das empresas mais poderosas e erráticas deste século, a primeira impressão ao digerir o Facebook Papers é de “déjá vu”. Ele revela (reforça?) que, sim, o Facebook é horrível, prioriza o lucro em detrimento de qualquer outro valor e Mark Zuckerberg apresenta traços preocupantes de psicopatia.
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O que esse volume infindável de materiais e reportagens coloca à mesa é uma verdade inconveniente: a impossibilidade de o Facebook realizar sua visão de “conectar o mundo”, ou de fazê-lo com um saldo positivo ao mundo, a nós, pessoas que vivem neste mundo. (Pergunto-me se essa nova obsessão com metaverso não seria reflexo da aceitação dessa impossibilidade, “Ok, neste aqui não deu certo, então vamos tentar fazer outro mundo”).
Colocar o mundo — ou quase metade dele, os três bilhões de usuários que o Facebook alega ter — no mesmo lugar sempre foi uma insanidade, se pensarmos bem. Você reencontra velhos amigos, descobre um restaurante gostoso ou um marceneiro firmeza no seu bairro e conhece pessoas que compartilham o mesmo gosto por cinema expressionista alemão, mas também, inevitavelmente, se depara com a escória da humanidade — conspiradores, sádicos, traficantes de seres humanos. Sem falar nas partes podres de gente que você conhece e gosta, o que é sempre triste, talvez desse para passar sem essa.
Lembrei também, durante a leitura desta reportagem, do livro “Armas, germes e aço”, do escritor norte-americano Jared Diamond. O germe, segundo o autor, é um personagem protagonista e comumente esquecido na história da humanidade. Na época das grandes navegações, teriam sido eles — vírus, bactérias e outros micro-organismos —, trazidos de carona pelos colonizadores europeus, os grandes responsáveis por dizimar populações nativas dos continentes invadidos.
O Facebook é, ao mesmo tempo, um neocolonizador digital e um tipo de germe resistente e destrutivo. Sua necessidade de crescimento constante o levou a se espalhar por todo o planeta, chegando a lugares onde a cultura local — um equivalente, na nossa analogia, aos anticorpos dos povos originários de 500 anos atrás — era tão distinta da californiana que o estrago era presumível e inevitável. Genocídio em Mianmar, linchamentos na Índia, autoritarismo no Vietnã e nas Filipinas.
O germe e neocolonizador Facebook só se interessa em combater seus efeitos colaterais em alguns países. Menos de 30, segundo os documentos internos. E nem nesses o Facebook consegue resultados satisfatórios.
Os Estados Unidos são prioridade máxima nos esforços de segurança e moderação da empresa ao lado de Brasil e Índia; são a sede, a casa do Facebook. E, mesmo lá, o Facebook é um desastre. Os serviços da empresa foram instrumentais para os movimentos mais desestabilizadores dos últimos anos, culminando na invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021.
Agora imagine a situação nos mais de 150 países onde o único interesse do Facebook é extrair dinheiro?
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Em sua defesa, o Facebook alardeia investimentos enormes em moderação. Ou que parecem enormes. Dias antes da divulgação do Facebook Papers, por exemplo, em resposta às primeiras reportagens baseadas nos documentos vazados por Haugen, publicadas pelo Wall Street Journal, a empresa afirmou ter investido mais de US$ 13 bilhões desde 2016 em segurança.
Coincidência ou não, no dia escolhido pelo consórcio de 17 veículos jornalísticos que trabalharam no Facebook Papers para publicarem seus achados, o Facebook soltou seu balanço fiscal do terceiro trimestre. A empresa lucrou US$ 9,2 bilhões, aumento de 17% em relação a 2020.
Dinheiro nem sempre é uma boa medida na resolução de problemas sociais, mas é sintomático que o lucro do Facebook em um trimestre seja quase o mesmo valor investido pela empresa em segurança nas suas plataformas nos últimos cinco anos.
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Outro sintoma desses números enormes — o faturamento foi de US$ 29 bilhões, aumento de 33% em relação a 2020 — é como nada parece abalar a capacidade de gerar receita do Facebook e de outras empresas de tecnologia trilionárias ou quase. Há um descolamento, a essa altura explícito, mas que nunca deixa de chocar, entre os efeitos negativos de empresas de capital aberto e o que o mercado valoriza. Enquanto o Facebook estiver imprimindo dinheiro e não houver perspectivas de acabar a tinta, está tudo bem.
O Facebook Papers tampouco deverá abalar a base de usuários. A essa altura, se escândalos do tipo repercutissem nesse sentido, o Facebook já deveria estar em encolhimento acelerado. Não é o caso, e é compreensível — para quem está na ponta, trabalhando pelo WhatsApp, apaziguando as ansiedades no Instagram ou bebendo ódio no Facebook, todo esse papo de democracia, saúde mental e deslealdade corporativa é etéreo demais.
Desconfio que poucos sequer lerão os descalabros do Facebook contidos nas reportagens do Facebook Papers. É, de fato, muita coisa, e ainda tem a barreira do idioma. E o desinteresse surpreendente dos sites brasileiros especializados em tecnologia.
Essa dura realidade pode dar a impressão de que o trabalho hercúleo da imprensa e de ex-funcionárias corajosas do Facebook é infrutífero, em vão. Não é o caso. Ele repercute em pequenos públicos que podem fazer a diferença, como a classe política. A única forma de conter os abusos do Facebook e das outras grandes empresas de tecnologia é regulando-os de maneira agressiva, sem a “ajuda” das próprias e de seus exércitos de lobistas. A nós, só resta esperar.
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Dado o volume de reportagens publicado desde segunda (25), o melhor caminho para se inteirar é pelas curadorias:
- Facebook Papers: leia o que já foi publicado sobre os documentos vazados, no Poder360.
- #FacebookPapers: reportagens para ler sobre os documentos internos da empresa, no Núcleo.
- Oito coisas que descobrimos nos Facebook Papers, no The Verge (em inglês).