Em novembro de 2021, à luz do enorme escândalo envolvendo denúncias de assédio sexual e misoginia na Activision Blizzard, o presidente da área de games da Microsoft, Phil Spencer, disse à Bloomberg que a empresa estava “avaliando todos os aspectos da nossa parceria com a Activision Blizzard e fazendo ajustes proativos contínuos”.
Corta para janeiro de 2022, ou dois meses depois, para o que parece ser o ajuste definitivo: nesta terça (18), a Microsoft anunciou a compra da Activision Blizzard, ainda imersa em escândalos, por US$ 68,7 bilhões a serem pagos em dinheiro.
O acordo transforma a Microsoft na terceira maior empresa de games do mundo em faturamento, atrás apenas da chinesa Tencent e da japonesa Sony, dona do PlayStation, que sentiu o baque — as ações despencaram 13% após o anúncio, evaporando US$ 20 bilhões em valor de mercado.
A Activision Blizzard amarga uma fase difícil desde meados de 2021, quando uma cultura interna de misoginia e inúmeros casos de assédio sexual e outros abusos vieram à tona. Em novembro, o Wall Street Journal revelou que Bobby Kotick, o longevo CEO da empresa, estava ciente dos problemas e nada fez para combatê-los. O descaso levou à revolta dos funcionários — eles chegaram a marchar na sede da empresa para pedir a cabeça de Kotick — e todo esse caos se refletiu no preço das ações da Activision Blizzard, que vem caindo desde então.
Nada disso, porém, altera o fato de a Activision Blizzard ser um titã do setor. Fundada em 1979, é tão antiga quanto o próprio setor em que se insere, e conta com franquias populares e extremamente lucrativas, casos de Call of Duty, World of Warcraft, Overwatch e Candy Crush. Em 2020, a empresa faturou US$ 8,1 bilhões e registrou lucro de US$ 2,2 bilhões.
De seu lado, a aquisição condiz com o histórico recente da Microsoft, que desde 2014 tenta consolidar esse mercado. Naquele ano, já sob o comando de Satya Nadella, a empresa pagou US$ 2,5 bilhões na Mojang, estúdio de um jogo só, mas um jogo imperdível: Minecraft. Em 2020, foi a vez de abocanhar a ZeniMax, dona da célebre Bethesda, dona de títulos de renome como Fallout, Doom e The Elder Scrolls, por US$ 7,5 bilhões.
É nesse ponto que os destinos de Microsoft e Activision Blizzard se cruzam.
Não é estranho plataformas de games adquirirem e manterem estúdios próprios. Num mercado um tanto homogêneo, em que video games são parecidos e os jogos mais cobiçados de terceiros saem em todas as plataformas possíveis para maximizar a geração de receita, os exclusivos acabam sendo um fator-chave na hora do consumidor decidir qual video game comprar. O caminho mais fácil e seguro para ter exclusivos de peso é produzi-los ou financiá-los por conta própria.
O que distingue a aquisição mais recente da Microsoft é a envergadura da empresa adquirida. A da Activision Blizzard é a maior da história do mercado de tecnologia, desbancando os US$ 67 bilhões que a Dell pagou pela EMC em 2015.
Tanto dinheiro assim tem uma razão de ser. Embora não seja algo estranho, a verticalização tem se acentuado na Microsoft nos últimos anos, e graças a uma dos diferenciais da empresa: a nuvem.
Em 2017, a Microsoft lançou um serviço de assinatura chamado Xbox Game Pass. É quase como uma Netflix dos games: o assinante tem direito a baixar e jogar todos os títulos do catálogo, mais de 100 já no lançamento, por uma mensalidade fixa e relativamente barata. Além de jogos antigos, os novos das franquias próprias da Microsoft, como Halo, Minecraft, Gears of War e Forza Horizon, e de estúdios menores/independentes, passaram a ser disponibilizados sem custo extra, no lançamento, para os assinantes do serviço.
No Brasil, o Game Pass custa R$ 29,99 por mês ou R$ 44,99 na modalidade Ultimate, que libera acesso aos jogos da Electronic Arts, outra força do setor, e ao Xbox Cloud Gaming, uma versão ainda mais similar à Netflix lançado no Brasil e no México em setembro do ano passado. Nela, os jogos rodam em poderosos servidores remotos e são “streamados” via internet para o dispositivo do jogar, que não precisa ser um caríssimo video game — pode ser um computador fraco ou até mesmo celulares.
Entre os bons jogos da própria Microsoft e títulos independentes e de menor expressão, o Game Pass ganhou um impulso significativo no final de 2020 com o catálogo de jogos da ZeniMax/Bethesda. De repente, os assinantes ganharam acesso a todos eles e a promessa de que os futuros lançamentos estariam disponíveis no primeiro dia, sem custo extra. Ainda que a ZeniMax continue lançando títulos para plataformas rivais — PlayStation da Sony e Switch da Nintendo —, nelas é preciso pagar o preço cheio do jogo, o que é muito menos vantajoso para o consumidor.
A Activision Blizzard deverá tornar o Game Pass ainda mais atraente, e não só agora. A empresa detém diversos estúdios premiados ao redor do mundo, que empregam cerca de 10 mil funcionários. É um enorme potencial criativo que se soma ao exército de programadores e criativos da Microsoft trabalhando a favor do Game Pass.
Os acionistas da Activision Blizzard devem ter recebido a boa-nova com um suspiro de alívio, e não só pelo prêmio de ~30% que a Microsoft pagou em cima da cotação das ações da empresa, mesmo aproveitando-se do momento delicado da adquirida.
Após a transição, especula-se que o problemático Bobby Kotick possa deixar o comando da empresa. Phil Spencer, CEO da Microsoft Gaming, passará a responder pela Activision Blizzard e terá muito trabalho pela frente para sanear o ambiente e restaurar a cultura interna, fortemente abalada no último ano pelos inúmeros casos de abuso a que a direção, incluindo Kotick, fizeram vista grossa, o que levou a processos na justiça e a protestos ruidosos de funcionários.
Na véspera do anúncio da aquisição, a Activision Blizzard informou que havia demitido 37 pessoas e advertido outras 40 desde julho passado, segundo o Wall Street Journal.
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O risco antitruste
A Microsoft também corre o risco de ter que se explicar a reguladores norte-americanos, cada vez mais sensíveis à sede por aquisições das gigantes de tecnologia do país, e que precisam aprovar o negócio.
Não que a Microsoft seja ignorante no tema — no final dos anos 1990, encarou pesados processos antitruste por causa do Internet Explorer —, mas ela vinha até agora se mantendo fora das polêmicas em que as outras big techs do país estão mergulhadas.
O comunicado à imprensa traz pistas sutis de que foi escrito para servir também como defesa contra acusações de monopólio. É o caso da menção ao famigerado “metaverso”, o que tira a Microsoft da arena dos games puro sangue, onde briga com as japonesas Nintendo e Sony (essa última, maior que a Microsoft em games) e a coloca em rota de colisão com o Facebook e uma infinidade de startups em um espaço incipiente e, acredita-se, mais aberto à concorrência.
É uma defesa difícil, porém. O fato das ações da Sony, principal rival da Microsoft no setor, terem absorvido o impacto da notícia imediatamente revela um clima de consolidação no ar. No mesmo sentido, outras grandes publishers, como Capcom, Square Enix e Ubisoft, viram suas ações dispararem, graças a acionistas esperançosos de que elas estejam na mira da Microsoft.
A Sony está atrasada na lógica de “play everywhere”, que desacopla os jogos dos aparelhos de video game dedicados, permitindo que eles sejam jogados em qualquer dispositivo, e na oferta de uma assinatura completa e unificada, mais acessível, mas menos rentável que a venda de jogos avulsos.
Analistas ouvidos pela Reuters disseram que a compra da Activision Blizzard pela Microsoft aumenta a pressão para que a Sony vá às compras também antes que a Microsoft abocanhe mais uma grande publisher.
Rumores indicam que a Sony prepara uma reformulação dos seus serviços de assinatura com a marca PlayStation, unificando-os e aproximando-se da paridade em relação ao Game Pass da Microsoft, a ser lançado em meados deste ano.