Imagem: Fortnite/Epic Games
Tecnologia

Na guerra contra a Apple, Epic Games acusa App Store de monopolizar distribuição de apps

O que se discute aqui é se a App Store é um negócio, portanto passível de ser caracterizado como um monopólio, ou se é um recurso intrínseco à experiência do iOS/iPhone. Há bons argumentos de ambos os lados

No dia 13 de agosto de 2020, a Epic Games declarou guerra à Apple. A Epic lançou uma atualização para iOS do Fortnite, seu jogo arrasa-quarteirão, infringindo explicitamente uma das regras sagradas da App Store: a de que itens digitais vendidos dentro de apps devem usar o sistema de pagamentos da Apple, e somente ele.

A Apple reagiu imediatamente, excluindo Fortnite da App Store e, com isso, privando milhões de usuários de iPhone de terem acesso a um dos jogos mais populares do planeta — se não o mais popular. Não foi uma surpresa; tanto que a Epic já tinha um contra-ataque na manga: a papelada para ajuizar um processo contra a Apple e uma campanha de marketing encabeçada pela reencenação, com personagens de Fortnite, do icônico comercial “1984” da Apple.

Dirigido pelo premiado cineasta Ridley Scott, o “1984” original foi uma espécie de manifesto audiovisual contra a IBM, a “big tech” dos anos 1980. Naquela época, a Apple era o David tentando derrubar um Golias vestido de camisa azul e munido de computadores bege sem graça. Quarenta anos depois, a Apple é maior do que a IBM jamais sonhou ser: uma empresa trilionária. De David, passou a ser um Golias bombado.

A batalha final dessa guerra começou no dia 3 de maio, com o julgamento daquela ação da Epic na Califórnia. Para muitos, trata-se do caso corporativo mais importante dos Estados Unidos desde o antitruste contra a Microsoft, no final dos anos 1990.

A Epic acusa a Apple de abusar do seu poder ao monopolizar a distribuição de aplicativos no iOS e cobrar uma taxa de 30% dos itens digitais vendidos dentro de apps. Diante disso, a Epic pede o direito de usar seu próprio meio de pagamento no Fortnite do iOS e, em paralelo, de distribuir o jogo diretamente aos usuários, sem ter que passar pela App Store.

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O sucesso de Fortnite sustenta as ambições da Epic. Documentos apresentados em juízo mostraram que só em seus dois primeiros anos o jogo faturou US$ 9 bilhões — e isso sendo um jogo gratuito, cuja renda vem da comercialização de itens virtuais cosméticos e de “passes de temporada”. Fortnite é tão grande que mudou a natureza e os planos da Epic. A empresa lançou uma loja de jogos para computadores para fazer frente ao Steam, da Valve, referência em PCs, e já torrou mais de US$ 11 milhões oferecendo jogos de graça para atrair jogadores-consumidores. Agora, quer repetir a receita no iOS.

De forma objetiva, o que se discute aqui é se a App Store é um negócio, portanto passível de ser caracterizado como um monopólio, ou se é um recurso intrínseco à experiência do iOS/iPhone. Há bons argumentos de ambos os lados.

Trinta por cento para distribuir aplicativos e processar pagamentos é muito? É pouco? Um aspecto interessante desses casos que vão parar na Justiça é que eles revelam uma tonelada de documentos e e-mails internos das empresas envolvidas, materiais ricos em detalhes que de outra forma dificilmente se tornariam públicos. 

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Foi assim que apareceu, por exemplo, um e-mail de 2011 de Phil Schiller, executivo da Apple à época responsável pela App Store, em que ele contempla uma mudança na divisão de receita, para até 20/80, quando a App Store ultrapasse US$ 1 bilhão em lucro anual. Schiller acreditava que mudanças no mercado forçariam a Apple a baixar o pedágio para se manter competitiva, e por isso sugeria que a empresa se antecipasse e oferecesse o desconto em um momento anterior ao da necessidade, enquanto estivesse por cima.

A outra demanda da Epic é para que a Apple abra o iOS e permita que aplicativos sejam distribuídos por outros meios. Hoje, alguém com um iPhone só consegue baixar novos apps pela App Store, que é operada pela própria Apple. No Android e em sistemas de computadores convencionais, como o macOS da própria Apple, além da loja oficial é possível ter lojas alternativas e instalar apps diretamente (“sideloading”).

A Epic argumenta que a atitude da Apple prejudica a competição e, por consequência, os usuários do iOS, ao mesmo tempo em que gera retornos bilionários à Apple — um consultor externo estimou a margem de lucro da App Store em 78%, percentual altíssimo mesmo para os padrões da Apple. Estaria configurado, portanto, um monopólio.

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Do seu lado, a Apple se defende dizendo que 30% já era um valor padrão na indústria que precede a App Store e que tal patamar se manteve depois do seu lançamento. A respeito da obrigatoriedade da App Store, a empresa alega que a fatia de mercado do iOS é pequena, e que o modelo de loja única garante mais segurança, privacidade e confiabilidade. Por fim, diz que a despeito disso tudo, a App Store viabilizou milhares de empresas e negócios criados ou que se expandiram em cima do iOS — do jeito que ele é e sempre foi.

Passadas quase três semanas do início do julgamento, quem acompanha o caso de perto sinaliza que a Epic está em desvantagem e deve perder. Alguns momentos expuseram fragilidades na argumentação da dona do Fortnite, como o fato de que Microsoft e Sony cobram os mesmos 30% que a Apple em seus respectivos videogames (e disso a Epic não reclama, mesmo o PlayStation sendo a plataforma mais rentável de Fortnite), e de que é possível comprar as moedinhas virtuais do Fortnite em navegadores e em outras plataformas e consumi-las no iOS, o chamado “cross-wallet”, sendo essa uma maneira de escapar da mordida de 30% da App Store.

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Independentemente do desfecho na Justiça, essa história não terminará aí. Nos últimos anos, em claras tentativas de aliviar a pressão vinda de empresas parceiras/rivais e de órgãos reguladores, a Apple fez tímidas concessões em seu modelo de negócio. Em 2016, aplicativos que oferecem assinaturas passaram a pagar metade da taxa (15%) em cima de usuários que ultrapassassem um ano pagando. No início de 2021, a Apple anunciou um programa especial para pequenos desenvolvedores, aqueles que faturam até US$ 1 milhão ao ano, em que cobra 15% deles.

Para a Epic, ainda é pouco — até porque ela não se beneficiou de nenhuma dessas concessões. E há outros pesos-pesados digitais cerrando fileiras contra a Apple. Uma semana antes do início do julgamento da Epic, do outro lado do Atlântico, a Comissão Europeia, motivada pelo Spotify, abriu uma investigação contra a Apple em relação ao Apple Music. O streaming sueco acusa a Apple de gerar um desequilíbrio competitivo ao cobrar 30% das assinaturas dos apps de streaming distribuídos pela App Store, enquanto o seu app do gênero não tem esse custo.

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