Em março de 2017, o perfil oficial da Netflix no Twitter publicou que “amor é compartilhar uma senha”. Não era só uma piada do social media. Pouco menos de um ano antes, em julho de 2016, a empresa havia dito ao Business Insider que seus assinantes podiam “usar suas senhas da maneira que quisessem”, desde que não as revendessem.
A Netflix sempre tratou de forma permissiva o compartilhamento das suas senhas. Enquanto outras empresas que trabalham com assinaturas, como o Spotify, são bem rigorosas com quem pode e quem não pode usufruir do acesso compartilhado, a Netflix, como as declarações acima atestam, até incentivava esse comportamento. Era uma farra.
Uma farra que está com os dias contados.
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Na segunda (18), a Netflix divulgou seus resultados do primeiro trimestre de 2022. Pela primeira vez desde outubro de 2011, há mais de uma década, a base de assinantes encolheu. Pior: foi uma surpresa, já que a empresa havia sinalizado ao mercado que a expectativa para o período era crescer em 2,5 milhões de assinantes. E vai piorar: a previsão para o segundo trimestre é de novo encolhimento, de 2 milhões de contas.
A carta aos acionistas veio cheia de justificativas — além do compartilhamento de senhas — para o desempenho negativo. O texto também fala do acirramento da competição, com empresas de mídia tradicionais entrando forte no streaming (Disney Plus, HBO Max) e outras com dinheiro infinito reforçando suas fileiras (Prime Video, Apple TV Plus), do fim da pandemia, da guerra da Ucrânia, até de TVs velhas que não são “smart” e, portanto, não acessam a internet e a Netflix.
Queria centrar a discussão, porém, nas senhas compartilhadas, que na prática significam usuários não pagantes, ou que não pagam o que a Netflix cobra.
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Considerando todos os lares onde a Netflix está presente, ela tem 322 milhões de usuários. Só que quase um terço desse número, ou 31%, usa senhas alheias — são 100 milhões de casas acessando a Netflix sem pagar ou rachando a conta com os assinantes de fato, os donos dos cartões debitados pelo serviço.
A fatia dos não pagantes é tão grande que você provavelmente conhece alguém que faz parte dela. Talvez esse alguém seja você. (Eu sou!)
O impacto no valor das ações da Netflix foi brutal. O papel, que já vinha desvalorizando desde dezembro de 2021, despencou ~40% no dia seguinte à divulgação dos resultados financeiros. Em poucas horas, dezenas de bilhões evaporaram na Nasdaq. Não é todo dia que um gráfico de ações desenha um penhasco tão profundo.
O mercado reagiu a um evento óbvio, absolutamente previsível, mas que o capitalismo parece preferir ignorar: os limites físicos. É difícil, mas algumas empresas conseguem bater no teto de pessoas aptas a consumirem seus produtos e serviços. Para a Netflix, que tem uma barreira de entrada relevante (é um serviço pago), parece que o teto chegou. O que vem agora?
A Netflix ainda queima muito caixa com produções próprias e só parou de fazer dívidas em meados de 2021. Ainda deve US$ 14,6 bilhões e tem US$ 6 bilhões em caixa. Neste primeiro trimestre, o faturamento cresceu 9,8% e a empresa lucrou US$ 1,597 bilhão, um trimestre de desaceleração comparado ao ano anterior.
Mas nada disso importa se o prognóstico é de estagnação. Grandes empresas só são legais enquanto estão crescendo e seus acionistas, satisfeitos. É impossível existir “negócio sustentável” nessa escala.
Por isso, a menos que o Reed Hastings, CEO da Netflix, tenha uma carta genial na manga, é bem provável que a Netflix comece a espremer a bela laranja que sempre foi e deteriore a sua exemplar experiência de usuário em troca de extrair mais dinheiro de quem já é assinante e atrair aqueles que não cogitam ou não conseguem bancar a assinatura, incluindo nós, os sanguessugas de assinaturas alheias.
Na conversa com acionistas, executivos da Netflix relembraram o teste que está sendo feito em Chile, Costa Rica e Peru de cobrar um adicional por senha compartilhada fora do domicílio do assinante e sugeriram a criação de planos mais baratos com anúncios, caminho em que rivais domésticos já estão trilhando (HBO Max, Hulu) ou se preparando para trilhar (Disney Plus).
Foi bom enquanto durou.