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Tecnologia

O árduo caminho entre o meu dinheiro e os músicos em um mundo dominado pelo streaming

Spolier: não basta prestigiar seus músicos favoritos para recompensá-los à altura. É preciso um esforço digno de fã — e, às vezes, nem assim

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Em uma passagem do Big Brother Brasil 21, o participante Caio apresentou a Rodolffo, que faz parte da dupla sertaneja Israel & Rodolffo, um aplicativo de celular “foda” que permitiria baixar músicas do YouTube. Sem entender a vantagem, Rodolffo questionou-o: “Mas pra quê? Baixa no Spotify, no próprio Youtube…”, no que Caio retrucou: “Uai, mas aí eu tenho que pagar. Esse é de graça.”

A vida do músico nunca foi fácil. A equação que envolve arte e retorno financeiro raramente fecha e, quando sim, é só para uns poucos, aqueles com enormes audiências e que faturam na casa dos milhões. Entre esses e o hobbista assumido, que não faz questão de receber dinheiro pelo seu som, há uma farta “classe média” musical que não consegue sobreviver da arte que produz.

O streaming, talvez a resposta mais potente à pirataria epidêmica que a combinação entre o formato MP3 e a popularização da internet provocou na virada do milênio, chegou com a promessa de promover um cenário mais justo. Mas, 15 anos depois — se considerarmos o lançamento do Spotify, em 2006, como o marco fundacional dessa maneira de se ouvir música —, já é possível dizer que aquela promessa ficou pelo caminho. Mudaram os meios, os hábitos e a tecnologia, mas os músicos, não raramente, ainda pagam em vez de receber pelo seu trabalho.

A ideia de produzir esta reportagem surgiu de uma inquietação pessoal. Até novembro de 2020, eu era um satisfeito assinante do Apple Music. Tecnicamente, não tinha do que reclamar do serviço — fora o app horrendo para computadores, o que não chegava a ser um problema porque não ouço música no computador. Mas, após um tempo, passei a reconsiderar essa escolha por dois motivos.

Primeiro, porque a Apple já tem grana demais e talvez fosse uma boa “democratizar” meus parcos trocados entre mais empresas menores. Segundo, porque queria que a maior parte desses trocados acabasse com os artistas, então usaria a remuneração que as plataformas repassam a eles como único critério para escolher o meu novo app de streaming musical.

Meses depois, sou assinante da Deezer, mas não por considerá-la a mais boazinha. Na real, chego ao fim desta investigação com muitas pontas soltas e respostas inconclusivas.

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Descobri, por exemplo, que no caminho que o dinheiro faz do meu bolso até o dos músicos de quem gosto, existem intermediários, burocracias e entraves. Descobri que o sistema de distribuição das plataformas de streaming sequer remunera exatamente quem eu ouço — e que esse, apesar de revoltante, talvez nem seja o maior problema dessa indústria. Descobri também – veja que ironia –, que o Apple Music é um dos serviços que melhor remuneram os artistas, ao menos em valores absolutos, ou por execução de faixa.

Em resumo: não basta prestigiar seus músicos favoritos para recompensá-los à altura. É preciso um esforço digno de fã — e, às vezes, nem assim.

Ao que interessa: quanto o artista recebe?

Antes de chegarmos àqueles entraves no meio do caminho entre o meu dinheiro e o que chega nas mãos dos músicos, precisamos dar um passo atrás para entender as engrenagens do mercado da música por streaming e, a partir delas, fazer algumas considerações.

A primeira é óbvia, mas pode passar batida por alguns: apenas uma parte do dinheiro pago pelos usuários “premium” chega aos músicos. Antes de qualquer coisa, as plataformas cobram uma comissão que, estima-se, varia de 30% a 40% do valor da assinatura. Uma pequena parte do restante fica com compositores; são os royalties devidos especificamente a eles, tradição anterior ao streaming. O que sobra vai para as gravadoras, distribuidoras e outras intermediárias obrigatórias, porque, hoje, músicos não conseguem publicar diretamente suas obras, como alguém faria com vídeos no YouTube ou textos no WordPress; é obrigatória a participação de um intermediário. E só aí, enfim, que o músico recebe o seu quinhão.

Tem outra. Um mesmo streaming pode ter variações drásticas de receita por usuário a depender de diversos fatores. O local é um deles: o “preço padrão” do Spotify, de US$ 9,99 nos Estados Unidos, acaba diluído em outros países com moedas mais fracas ou onde a competição é mais acirrada.

No Brasil, por exemplo, o plano individual do Spotify (da maioria dos serviços, na real) custa R$ 16,90 por mês. Se considerarmos o dólar a R$ 5,50, isso se traduz em US$ 3,07. Na Índia, um dos maiores mercados consumidores do mundo, mas que tem uma população relativamente pobre, o Spotify foi lançado em 2017 por míseros US$ 1,70/mês. O cálculo ainda precisa levar em conta promoções temporárias (incentivos usados para atrair novos assinantes), planos familiares e acordos comerciais, como os que a Deezer tem com a TIM e o Globoplay por aqui. Em resumo, o preço médio pago por assinante nunca é aquele “padrão” norte-americano e, quase sempre, é (bem) menor que ele.

Todos esses “poréns” estão explicados neste artigo de 2019 publicado por Dmitry Pastukhov, no blog do Soundcharts.

A antiga e a nova indústria da música divididas (só que nem tanto) entre dois modelos

Depois de todas as subtrações já mencionadas, o bolo que sobra para os músicos pode ser dividido segundo dois modelos possíveis: o pro-rata e o UCPS.

O mais popular, padrão em praticamente todas as grandes plataformas, é o modelo pro-rata. David Turner, que trabalha no SoundCloud e mantém uma newsletter focada no mercado de streaming musical, resume-o assim: Todo o dinheiro gerado pelo serviço de streaming é dividido pelo total de execuções [das músicas], e esse dinheiro é distribuído proporcionalmente aos músicos.

Em outras palavras, o valor da minha assinatura não vai proporcionalmente aos artistas que eu ouço, mas aos artistas que todos os usuários da plataforma ouvem. Mesmo que eu jamais ouça Israel & Rodolffo, Raí Saia Rodada ou Os Barões da Pisadinha (alguns dos artistas mais ouvidos do Spotify na primeira semana de abril), se eu for assinante premium do Spotify agora em abril estarei pagando algumas frações de centavos a eles.

A crítica mais recorrente ao modelo pro-rata é a de que ele seria injusto com artistas menores, menos populares, e que o valor pago por execução seria baixo. Existe até uma campanha, centrada no Spotify, que exige que a plataforma pague pelo menos US$ 0,01 (um centavo de dólar) por cada execução. Segundo estimativas feitas pelo Soundcharts, no final de 2019 o Spotify pagava cerca de US$ 0,0032 por execução, ou seja, eram necessárias quatro execuções para que o artista recebesse US$ 0,01 (um cent), ou US$ 0,0128.

Esse valor flutua, pois é o resultado de uma simples operação aritmética com variáveis móveis. A menos que a base de usuários cresça na mesma proporção da de faixas executadas, a tendência é que o valor pago por faixa executada diminua — cada novo assinante, espera-se, ouve muito mais que uma faixa por mês.

Dentro da lógica do modelo pro-rata, as únicas maneiras de aumentar o valor por execução é aumentando o bolo, ou seja, a quantidade de usuários pagantes, ou executando menos músicas, mas esse último item não se alinha aos interesses de ninguém — nem do Spotify, nem dos músicos. Considere, ainda, que o Spotify trabalha ativamente para aumentar o engajamento em sua plataforma, com recursos como o “autoplay” e as playlists dinâmicas, o que empurra ainda mais para baixo o valor pago por cada execução e, ao mesmo tempo, aumenta a pressão para crescer a base de usuários pagantes.

O contraponto ao modelo pro-rata é o UCPS, sigla em inglês para sistema de pagamento centrado no usuário. Nele, há uma correspondência perfeita entre fãs e artistas: se metade das música que ouvi num dado mês foi de um artista só, metade do valor da minha assinatura (descontadas taxas e outras despesas) vai direto para ele.

Em setembro de 2019, a Deezer foi a primeira grande plataforma de streaming a anunciar que migraria do modelo pro-rata para o UCPS. Apesar disso, não foi a primeira a implementá-lo de fato — a plataforma ainda trabalha com o pro-rata. A honra do pioneirismo coube ao SoundCloud, que virou a chave em sua plataforma no último 1º de abril. Pode-se discutir que o SoundCloud é uma plataforma um pouco distinta, mais voltada a artistas independentes que as demais, mas isso não tira seu mérito em abraçar antes de todo mundo o UCPS.

Na Deezer, o UCPS é encarado como “uma nova forma de pagamento de royalties para os artistas e toda a cadeia da indústria da música, baseada no consumo de cada usuário, que acreditamos ser uma forma mais justa”, explica Marcos Swarowsky, diretor geral da Deezer América do Sul. Outra vantagem do modelo, segundo o executivo, é que ele “elimina qualquer possibilidade de bots [robôs] influenciar a quantidade de receita que um artista receberia”.

Tudo muito bom, tudo muito bonito, o que nos leva à pergunta óbvia: por que a Deezer, um ano e meio depois de anunciar que migraria para o UCPS, ainda não o fez? “O que falta atualmente é a aceitação e adesão pelo mercado fonográfico, isto é, a cadeia de gravadoras, distribuidoras e artistas”, justifica Marcos. A Deezer, afirma, já está preparada para dar esse passo, mas falta combinar com o resto da indústria.

Uma característica da indústria do streaming, seja no modelo pro-rata ou UCPS, é a opacidade. Mesmo quando revelam dados, é sempre de uma maneira esquisita, com uma narrativa muito bem construída, dando razão à máxima de Ronald Coase, economista e Nobel de Economia, que dizia que se você torturar os números o bastante, eles lhe dirão qualquer coisa.

No caso do UCPS, ainda faltam situações reais que embasem o que, em tese, poderia ser um modelo mais justo aos artistas. Em sua newsletter, Turner reuniu alguns estudos apontando que, no saldo final, pro-rata e UCPS não divergem muito — “aumento para os artistas mais populares, diminuição para os menos populares e um aumento modesto para os medianos”. Ainda assim, ele diz que gostaria de ver o UCPS em ação.

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Com a palavra, os artistas: “Nunca vivi de música”

No último dia 15 de março, de sua casa em Jundiaí, no interior de São Paulo, a cantora Letty acessou suas redes sociais para participar de um protesto digital contra o Spotify. Cantora, compositora e guitarrista, Letty tem alguns EPs e singles publicados em plataformas de streaming, e embora a música seja a sua vocação, ela ganha a vida como tradutora de inglês–português.

Foi num trabalho com tradução que Letty topou com o movimento #JustiçaNoSpotify, organizado pelo Sindicato de Músicos e Trabalhadores Aliados (UMAW, na sigla em inglês), nos Estados Unidos. “Por coincidência, fui traduzir um texto que falava do modelo de funcionamento do Spotify e de como é um modelo que explora os artistas. E foi nisso que surgiu a faísca no meu pensamento”, diz ela. Entre outras demandas, o movimento pede que o Spotify seja mais transparente com os artistas e que pague, no mínimo, US$ 0,01 por execução. O protesto já conseguiu o apoio e as assinaturas de quase 28 mil músicos.

Letty publica a maioria das suas músicas pela Tratore, uma distribuidora, mas um dos EPs mais recentes saiu pela Howlin’ Records, um selo de amigos da capital paulista. O acordo com o selo é mais vantajoso, porque ele não exige um pagamento inicial. Já na distribuidora, é preciso pagar R$ 50 por lançamento, independentemente do número de faixas. Em ambos os modelos, o intermediário divide com a artista a receita gerada no streaming.

A cantora, compositora e guitarrista, Letty. Foto: Divulga’ç˜ão

A cantora se define como uma artista independente e pequena, e faz a ressalva antes de dizer que ainda está no prejuízo dentro do streaming: “Eu não consegui ter retorno do que eu paguei para subir as músicas. Esses R$ 50 de cada lançamento, eu ainda não recebi [de volta].”

Não é uma situação incomum, mesmo para artistas mais conhecidos. Letty comenta que, em uma live recente de que participou, soube que a Violet Soda, uma banda paulista mais popular, enfrenta o mesmo dilema. “Se nem com a minha banda, que é de médio porte, consigo minimamente fazer o mercado da semana com um dinheiro que vem de vez em quando [do streaming], que dirá artistas menores”, refletiu em vídeo a vocalista Karen Dió.

No interior do Paraná, Gustavo Ferreira, professor de Comunicação na UEM, doutorando pela UERJ e vocalista da banda Errorama, relata uma experiência parecida à de Letty. Sua banda está num “momento Los Hermanos”, como ele define (“a gente parou [em 2017], mas não quer dizer que desistimos”), mas mantém os EPs gravados disponíveis nas principais plataformas de streaming há anos, quase todos mediados pela distribuidora ONErpm. “O streaming [rende] tipo… US$ 2 por ano”, revela.

Gustavo Ferreira, professor de Comunicação na UEM, doutorando pela UERJ e vocalista da banda Errorama. Foto: Arquivo Pessoal.

A Errorama nunca foi a atividade principal de nenhum dos integrantes. O dinheiro que faziam com shows, a principal fonte de receita nos tempos em que estavam na ativa, era reinvestido em equipamentos. “Era assim que a gente sustentava o hobby — eu chamo de hobby porque a gente não vivia disso”, diz.

Ele também já distribuiu as músicas por um site próprio, com um botão do PayPal para doações espontâneas, e no modelo de venda unitária, consolidado pela Apple com o iTunes e o iPod no início dos anos 2000. Ambos também não tiveram tração.

Atualmente, além dos serviços de streaming, o Errorama distribui suas músicas autorais no Bandcamp da Nap Nap Records um selo criado por músicos amigos de Maringá (PR). Os dois, Letty e Gustavo, mencionaram espontaneamente o Bandcamp como exemplo de modelo alternativo ao do streaming. Não foi por coincidência.

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Possíveis alternativas de remuneração para músicos

Fundado em 2007 na Califórnia, o Bandcamp é uma ode à música e aos músicos: espécie de rede social misturada com loja virtual, ele permite a qualquer músico ou banda enviar eles próprios suas músicas, sem intermediários, e venderem-nas pelo preço que quiserem, inclusive no modelo pague-o-quanto-quiser. O Bandcamp também oferece espaço para a venda de merchandising e jamais cobra mais do que 15% de comissão — em produtos físicos, como vinis e camisetas, a mordida é ainda menor, de 10%. 

Durante a apuração desta reportagem, tentei entrevistar alguém do Bandcamp, sem sucesso. Também tentei falar com o Spotify, que, via assessoria, declinou meu convite argumentando que estavam “reorganizando algumas coisas internamente e não estamos autorizados a marcar entrevistas”.

Pedir o apoio direto dos fãs é um caminho que Gustavo vislumbra como promissor para músicos independentes. “O Bandcamp é uma referência nesse sentido”, mas ele “acaba virando de nicho por isso: quem sustenta artista lá é o fã de música, que está mais investido nisso. Não quero dizer que outras pessoas não gostem de música, que quem ouve rádio FM não gosta de música, não é isso; o encarar o que é música é que é diferente”.

Com a pandemia, que afetou em cheio a fonte de receita mais generosa e recorrente dos músicos, os shows ao vivo, tornou-se urgente reformar as regras do streaming e, em paralelo, buscar por novas fontes de receita.

Letty também disponibiliza suas músicas no Bandcamp: “Você pode baixar o meu álbum de graça, se quiser, mas se quiser contribuir, pode também, e com qualquer valor. A única questão triste do Bandcamp é que não aceita real, só dólar, mas é uma maneira legal de ter a contribuição direta”. Apesar da explosão de plataformas de financiamento coletivo no Brasil, ainda não existe uma exclusiva para música.

Pergunto a Gustavo se, no geral, as plataformas de streaming mais ajudam ou atrapalham os artistas. “É difícil dizer porque é uma mudança na forma de ouvir música que é ‘irreversível’”, explica. E lembra que o formato anterior, o de mídias físicas, também tinha sua miríade de problemas — no mínimo, a concentração dos lucros com música era ainda maior — e que nem todas as alternativas possíveis ao modelo vigente são necessariamente melhores — na pirataria por exemplo, o artista não recebe absolutamente nada.

Adaptar-se, ainda que na marra, acaba sendo o único caminho possível. Em seu doutorado, Gustavo pesquisa os algoritmos de recomendação automática das plataformas de streaming e a relação quase simbiótica entre eles e os curadores humanos: “Uma coisa alimenta a outra e no fim acaba virando um procedimento muito próximo um do outro, curadoria humana e recomendação automática, que valoriza a playlist como fonte de validação do que o ouvinte quer. ‘Olha, se essa música está em primeiro na playlist e ela foi ouvida várias vezes, significa que ela tem potencial.’ De onde estão vindo essas cinco ou seis audições mensais [da Errorama]? De playlists, tanto automáticas quanto de usuários. Se eu estou entrando em automáticas, é porque o algoritmo está pegando dessas pessoais, porque não estamos fazendo nenhum divulgação. A banda está parada.”

Em outras palavras, além do rendimento pífio, os músicos são cada vez mais submetidos a caprichos e demandas das plataformas que podem até soar sutis, mas na prática são imperativas. Em julho de 2020, Daniel Ek, fundador e CEO do Spotify, rebatia críticas de músicos insatisfeitos com sua plataforma quando afirmou que eles não podem mais achar que lançar um álbum a cada três ou quatro anos seja suficiente. “Os artistas de hoje que são bem sucedidos sacaram que o lance é criar um engajamento contínuo com seus fãs”. Ou seja: produza para o algoritmo ou caia fora.

A migração para o streaming parece mesmo um movimento irreversível. Segundo a RIAA, associação de gravadoras dos Estados Unidos, em 2020 o streaming (pago e sustentado por anúncios) respondeu por ~67% da receita de US$ 12,2 bilhões do setor fonográfico no país. Pelos dados apresentados , é evidente que o streaming tem ajudado na recuperação das receitas da indústria como um todo, mas ainda está longe de elevá-las ao patamar dos tempos áureos do CD: no pico, em 1999, os disquinhos de plástico eram 87,9% de um mercado de US$ 22,7 bilhões (valor ajustado pela inflação).

Nesse cenário consolidado, em que o streaming é o modo padrão de ouvir música, a presença nele vira algo que transcende o aspecto financeiro. “O streaming, hoje, é uma necessidade pela presença, para se divulgar. ‘Ah, você conhece minha banda? Não? Ouve aqui’, já está na mão para a pessoa ouvir”, explica Gustavo. 

“Acredito que não é um problema que será resolvido abolindo o Spotify”, reflete Letty. Não que o Spotify não tenha culpa na situação difícil dos músicos, apressa-se em emendar, mas é que ele seria apenas o culpado da vez. “Muda a empresa que manda e o problema continua lá”, diz. “Acho que é um problema do sistema como um todo, da indústria, de como a gente mercantiliza a nossa música e como isso vira uma bola de neve de problemas para os artistas, de serem cada vez mais explorados. Dá para perceber que não é um problema da empresa, mas de como estamos na mão dessas grandes corporações.”

Em alto e bom som: os dados que o Spotify abre

Em resposta a protestos como o #JustiçaNoSpotify, em março o Spotify colocou no ar o site Loud & Clear, que tem por objetivo “aumentar a transparência compartilhando novos dados da economia global do streaming e detalhando o sistema de royalties, seus participantes e o processo”.

Segundo dados do site, 870 artistas receberam mais de US$ 1 milhão cada em 2020. No mesmo período, 13,4 mil artistas no mundo inteiro receberam US$ 50 mil, quase o dobro do de 2017, quando 7,3 mil artistas alcançaram a marca. Em quaisquer dos casos, são agulhas num palheiro gigantesco: em 2018, quando abriu esse dado pela última vez, o Spotify tinha 3 milhões de artistas em seu catálogo. 

Se mantivermos esse número intacto três anos depois (o que é pouco provável; deve ter aumentado), isso significa que apenas 0,45% dos músicos ganharam o equivalente ao salário médio de um trabalhador norte-americano no primeiro trimestre de 2021, de US$ 51,1 mil por ano, segundo o Birô de Estatísticas Trabalhistas (BLS, na sigla em inglês).

Outro dado revelado pelo Loud & Clear dá uma dimensão do que é ser popular no mundo do streaming. Um milhão de execuções de uma música parece bastante, praticamente uma garantia de sucesso comercial, certo? Sim e não. Na escala descomunal do Spotify, atingir tal número é um feito mundano: 551 mil músicas já foram ouvidas mais de um milhão de vezes na plataforma. As que passaram a barreira de 100 mil execuções? 2,71 milhões. 

Mesmo com números enormes e todo o esforço em marketing para se mostrar pródigo com artistas que o acusam de ser sovina, foi só no final de 2019 que o Spotify conseguiu fechar um trimestre com lucro. E, veja bem, um trimestre; o Spotify jamais deu um lucro anual.

Naquele 2019, a empresa sangrou € 186 milhões; em 2020 o rombo foi ainda maior, de € 581 milhões. Boa parte desse prejuízo é deliberada, significa que a empresa ainda está apostando — e investindo pesado — em crescimento, estratégia tida como crucial para viabilizar o modelo e que encontra eco no setor. Mas todos esses valores vermelhos formam também, a despeito de promessas e projeções, um sinal de alerta de que talvez a conta não feche e jamais vá fechar na música por streaming.

A Apple, que entrou tarde no jogo, mas entrou com os dois pés firmes no chão, se diferencia dos concorrentes em um aspecto crucial: não oferece plano gratuito do Apple Music, do tipo financiado por anúncios (menos rentável). Por isso, tem uma base de usuários bem menor que a do Spotify — 72 milhões contra 345 milhões do Spotify, sendo 150 milhões “premium” —, mas todos eles são pagantes. Essa dinâmica permite à Apple se gabar de pagar aquele mítico US$ 0,01 por execução aos artistas. Porém, graças a seu tamanho fora de escala, o Spotify ainda distribui valores absolutos aos artistas mais elevados que a Apple.

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