NFT o que é
Primeira exposição de NFTs na galeria de arte Sotheby's, em New York; junho de 2021. Foto: John Angelillo/UPI/Shutterstock
Tecnologia

O delírio dos NFTs nos levará ao fim do mundo

Se é possível a qualquer um obter a arte digital do Beeple com um `Ctrl + C`, `Ctrl + V`, por que alguém pagaria milhões por um certificado de propriedade sem respaldo jurídico e que pode sumir de uma hora para outra? Rodrigo Ghedin reflete sobre os NFTs em coluna para o LABS

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Fosse vivo hoje, Walter Benjamin teria muito o que pensar e escrever a respeito da digitalização da cultura, de serviços como os de streaming e dos vários modelos de negócio que gravitam a arte, como os NFTs. Na ausência do pensador alemão do século XX, você terá que se contentar comigo, um mero observador sem o talento nem o conhecimento de Benjamin, para tentar entender esse último, o NFT, sigla em inglês para token não-fungível, a grande sensação ou fraude do mercado em 2021, dependendo a quem você pergunte.

Nesta parte do texto eu deveria  explicar, ou tentar, o que é um NFT. Farei isso, mas fugindo dos detalhes técnicos que, em geral, contribuem pouco. Há quem argumente que a suposta complexidade da coisa é pré-requisito para vendê-la, pois trata-se de algo que, em essência, é muito mais simples do que parece. É o “dourar a pílula”. Se a dica básica de investimentos é saber no que se investe, já na largada essa dificuldade proposital de compreensão dos NFTs levanta sobrancelhas.

Em termos simples, ou compreensíveis, NFT é um registro em um banco de dados distribuído (a blockchain) que atribui propriedade (e, por isso, valor intrínseco) a um item digital.

O que torna o NFT um negócio esquisito é que ele renega a característica definidora do digital mesmo sendo ele próprio digital: a reprodutibilidade perfeita a custo insignificante. Você mesmo pode fazer um teste aí, no seu computador: abra o Windows Explorer, selecione um arquivo, aperte `Ctrl + C`, depois aperte `Ctrl + V`. Parabéns, você criou uma cópia perfeita de um item digital. Existem até mecanismos para atestar a perfeição da cópia, que os zeros e uns do novo arquivo são rigorosamente os mesmos do “original”, como os códigos de soma de verificação (checksum). No digital, a cópia perfeita é tão trivial que sequer nos damos conta dela no dia a dia.

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O atestado de propriedade de um NFT é um registro numa blockchain, outra tecnologia difícil de explicar e, até o momento, sem utilidade. (Note um padrão.) O comprador recebe um arquivo JSON com uma breve descrição do item e algumas URLs. Essas blockchains são criadas ou emprestadas pelas startups que tentam emplacar a tecnologia dos NFTs, e não há nada que garanta que elas estarão de pé daqui a dez anos, pelo contrário — é estatisticamente improvável, dada a alta taxa de mortalidade das startups em geral. Se (ou quando) a startup detentora da blockchain onde seu NFT foi registrado quebrar, seu NFT afunda junto.

O registro de um NFT pretende atestar que determinado arquivo digital tem dono. Pode ser um desenho, uma música, um post no Twitter. Este texto que você está lendo, por exemplo, é na realidade um arquivo HTML com algumas dependências (outros arquivos CSS e JavaScript) expelido pelo servidor do LABS assim que solicitado pelo seu navegador web. Para ele se tornar um NFT, bastaria que alguém o registrasse em uma blockchain. Sim, é simples assim. Outra característica marcante do digital é a sua versatilidade. Hoje, qualquer coisa pode ser digitalizada, logo, qualquer coisa pode se tornar um NFT.

Não há tempo para entrarmos naquele cansativo debate sobre o  que é arte. E nem importa neste contexto. O que menos importa nos NFTs é o objeto em si que está sendo negociado. 

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O paralelo com a arte, usado como primeira linha de defesa da importância ou necessidade dos NFTs, é quase perfeito, mas se perde no momento em que eu dou um `Ctrl + C`, `Ctrl + V` naquela pintura do Beeple vendida por milhões de dólares, porém em criptomoeda. Não é como se eu tivesse o equivalente a uma caneca com a Mona Lisa pintada. A comparação mais precisa é que, ao fazer isso, eu tenho a própria pintura do Da Vinci, sem gastar um centavo. O poder do digital.

No mundo dos NFTs, eu e o comprador anônimo temos, a rigor, o mesmo arquivo, mas ele pode dizer que é “dono” da arte e acredita quem quiser.

Não que a arte tradicional, analógica, tenha algo de divino nem jamais tenha sido usada para lavar dinheiro e reputações, entre outros usos questionáveis. Longe disso. É que no NFT não há sequer a preocupação em manter as aparências, em outros valores que não o financeiro, tampouco qualquer avanço ou questionamento aos objetos que transforma em mercadoria.

Quando Benjamin, nosso filósofo alemão do início da coluna, debruçou-se sobre a  reprodutibilidade técnica e a perda da “aura” na arte em seu famoso artigo nos anos 1930, abordou as então novas possibilidades e desafios que o cinema, a música gravada e a impressão de cópias da Mona Lisa colocavam à mesa. O digital abriu uma infinidade de novas possibilidades nesse sentido. NFTs? Zero. Ele é uma “evolução” do mercado, não tem nada a ver com arte.

Criptomoedas, a base do delírio

Em seu best seller “Sapiens: Uma breve história da humanidade”, Yuval Noah Harari argumenta que dinheiro e religião são as maiores ficções que o ser humano já criou. Pense no dinheiro. Aqueles pedaços de papel (cédulas) e números na tela (em sistemas informatizados)  têm valor pela crença inabalável e universal de que eles têm valor.

Os NFTs e, por extensão, as criptomoedas, também dependem da fé. Eles apenas migram o objeto da crença para um algoritmo, pois, acredita-se, o algoritmo seria “neutro” e, portanto, justo.

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Se é possível a qualquer um obter a arte digital do Beeple com um `Ctrl + C`, `Ctrl + V`, por que alguém pagaria milhões por um certificado de propriedade sem respaldo jurídico e que pode sumir de uma hora para outra? A resposta poderia envolver fins nobres, como fomentar a arte, ou mesmo egoístas, como poder bater no peito e dizer “é meu”, e talvez até tenha algo disso lá no fundo, mas, convenhamos, o verdadeiro motivo é o mesmo que tem levado cada vez mais pessoas a “investirem” em criptomoedas: a crença (!) de que o valor desses ativos digitais subirá no futuro.

Poderia-se, aqui, estabelecer outro paralelo, com o mercado de ações, cuja flutuação e lucratividade também se baseiam na expectativa de valorização futura. A diferença é que as ações têm um lastro na realidade, a realidade das empresas, que a cada três meses apresentam resultados e dividem lucros com seus acionistas após fabricarem produtos ou prestarem serviços. NFTs e criptomoedas não chegam a tanto. São “riquezas” imaginárias.

(Dia desses soube que tem gente vendendo tokens de ações de empresas listadas, como Tesla, Apple e Amazon, em plataformas de criptomoedas. São “versões sintéticas”. Fascinante.)

Eu não chegaria tão longe, por isso fiquei aliviado quando Jemima Kelly, colunista do Financial Times, escreveu com todas as letras: “Se tal sistema [de criptomoedas] te lembra um esquema Ponzi, é porque ele é.” Ela reconhece algumas diferenças entre as duas coisas, como a descentralização das criptomoedas, mas ambos, criptoativos e esquemas Ponzi, só cumprem suas funções enquanto houver gente nova, ou novos crentes, entrando no esquema. Um dia, naturalmente, as pessoas acabam e aí o esquema desmorona.

Em entrevista ao LABS, o professor doutor em Ciência da Computação pela Universidade de Stanford e professor titular da Unicamp, Jorge Stolfi, classificou NFTs como “o absurdo das criptomoedas elevado ao quadrado”. Crítico ferrenho, ele já havia equiparado criptomoedas a esquemas Ponzi antes de Jemima e, para ilustrar o tal absurdo dos NFTs, publicou um post de uma hilária conversa fictícia, imaginando como um colecionador de arte mostraria o seu acervo de NFTs a um curioso.

“Ser dono de um quadro físico tem sentido porque é só uma pessoa que pode ter aquele quadro na casa dela. Só aquele quadro que tem uma história. Os átomos que estão lá são os mesmos átomos que o Rembrandt pegou da paleta dele e colocou na tela, enquanto que os elétrons e os fótons que estão numa imagem digital na sua tela não são os mesmos que o artista colocou e, por outro lado, todos eles [das cópias] são igualmente bons, têm a mesma história”, explica Jorge. “São cópias do padrão de elétrons que o cara colocou na memória quando estava pintando na tela do computador. Inclusive, quando ele pintou na tela, a imagem estava na memória. Assim que ele salvou a imagem no disco, ele fez uma cópia da memória para o disco. Aquilo que está no disco nem é original, já é uma cópia.”

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Para não dizerem que só listei céticos convictos nesta crítica aos criptoativos, dia desses Jackson Palmer, co-fundador da Dogecoin, uma “shitcoin” abraçada por Elon Musk, da Tesla, ele próprio um crente tecnocrático, respondeu a uma pergunta que todos lhe fazem com frequência, se ele voltaria a mexer com criptomoedas:

“Após anos de estudo, acredito que criptomoedas são uma tecnologia inerentemente de direita, hiper-capitalista, construída principalmente para ampliar a riqueza de seus proponentes através de uma combinação de evasão fiscal, relaxamento da supervisão regulatória e escassez imposta artificialmente.”

Um futuro brilhante, mas para quem?

O dinheiro fiduciário, aquela ficção em que todos acreditamos, tem seus muitos problemas, mas resolve outros tantos, em especial a troca de bens entre seres humanos. E ele circula, instiga as pessoas — às vezes até demais — a agirem. Consigo comprar um pão e pagar o aluguel com o que recebo em troca do meu trabalho. Com criptomoedas? Não há qualquer possibilidade de fruição ou disposição. Se eu quiser ganhar mais dinheiro, posso trabalhar e/ou empreender. Quer ganhar mais com criptomoedas e/ou NFTs? Espere sentado, literalmente. No máximo, poste no Twitter que comprar criptoativos é bom demais.

Os valores vultuosos alcançados por criptomoedas nos últimos anos e, em 2021, nos leilões de NFTs, fizeram gente do mercado tradicional, de instituições financeiras a casas de leilão, levar a sério os ativos digitais, porque, hoje, “dinheiro” é o argumento definidor do que deve ser levado a sério. O primeiro ETF de criptomoedas da B3 foi lançado dia desses e já é um dos mais populares do país, e talvez eu não esteja exagerando se disser que a cada dois ou três dias recebo um comunicado de imprensa de alguém lançando um NFT no Brasil. 

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“Você conhece a história do Maddof?”, perguntou-me Jorge. Bernie Madoff fez fortuna em Wall Street na segunda metade do século XX com um esquema fraudulento que perdurou quase 30 anos, mas acabou caindo. Para o professor, criptomoedas revivem aquele cenário, em que um esquema altamente lucrativo é apresentado e, por isso, muitos fazem vista grossa, de investidores institucionais a governos, às lacunas evidentes.

“Eu não vou me arriscar a prever o fim das criptomoedas”, prosseguiu. “Se passar disso [o tempo  que durou o esquema de Madoff], aí vou começar a achar que está demorando. Pode ser que acabe daqui a um mês, sei lá. Não vou me arriscar a fazer previsão.”

Talvez dure mais, talvez criptomoedas e NFTs vinguem e se tornem presenças perenes em carteiras de investimentos e… bem, só lá, porque dentro da licitude, eles só servem para especular. Isso, claro, até o mundo se tornar uma terra arrasada hostil à vida humana, não sem a ajuda das blockchains e seu desperdício nababesco de energia, e a gente passe a ter que se preocupar com questões mais imediatas, como brigar por água potável e comida e fugir de ondas de calor mortíferas ou enchentes devastadoras. Mas, hey, até lá esse seu NFT estará valendo uma nota. Ou não.

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