Em junho, o Congresso Nacional do Brasil aprovou um projeto (Lei 14.172/2021) que prevê o investimento de R$ 3,5 bilhões (US$ 690 milhões) em fundos de emergência para escolas públicas, com o objetivo de garantir o acesso à internet para alunos e professores para durante a pandemia, item tão básico quanto lápis e caderno em tempos de aprendizagem remota. Mais de 18 milhões de alunos e 1,5 milhão de professores do sistema público de educação serão beneficiados. Três meses antes, o presidente Jair Bolsonaro havia vetado o projeto.
O dinheiro será usado principalmente para custear internet móvel ou banda larga fixa, se for mais barata ou em locais onde o sinal de internet móvel não chegue. Os grupos prioritários incluem estudantes já inscritos em programas sociais, e estudantes de comunidades rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
A derrubada do veto presidencial e a disponibilidade de uma verba tão necessária para a educação durante uma pandemia pode parecer uma grande vitória. No entanto, R$ 3,5 bilhões é mais como um Band-Aid tentando estancar a sangria que é a defasagem enfrentada pela educação brasileira.
Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que o Brasil vive o que ela chama de “crise dentro da crise” desde o início da pandemia. A crise política e socioeconômica – incluindo grandes retrocessos no orçamento destinado à educação – começou muito antes de alguém sequer ouvir falar de COVID-19.
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Em 2016, o Congresso Nacional aprovou a Emenda 95 como forma de segurar os gastos públicos. Essa emenda constitucional estipula que o governo não pode gastar mais do que no ano anterior, sendo a inflação o único índice de correção permitido. A aprovação da emenda, cuja vigência vai até 2036, essencialmente, consagrou medidas de austeridade pelos próximos 20 anos. Bolsonaro baseou seu recente veto à lei da internet gratuita na Emenda 95.
Agora, considere essa estatística pré-pandemia de 2019: embora a internet tenha alcançado 88,1% dos alunos do Brasil, 4,1 milhões de escolas públicas não tinham acesso à internet.
Já estávamos enfrentando sérios retrocessos na educação básica de qualidade, especialmente para conseguir disponibilizar acesso à internet em todas as escolas. Então, a pandemia fechou as escolas e os alunos agora precisam de internet, computadores, tablets e treinamento para acessar as atividades das aulas online em casa – e não temos dinheiro e recursos para fazer isso.
Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
De acordo com um artigo recente da Human Rights Watch intitulado “Brasil: fracasso em responder à emergência educacional”, o Ministério da Educação (MEC) sob a administração de Bolsonaro, não só limitou os gastos futuros com a educação como também reteve fundos que já haviam sido alocados para a educação pública.
O orçamento geral para a área em 2020 previa R$ 48,4 bilhões especificamente para o ensino fundamental. Desse montante, o MEC gastou cerca de dois terços, ou R$ 32,5 bilhões, o menor valor investido nos últimos dez anos. Além disso, o MEC cortou o apoio ao programa Educação Conectada, um projeto do governo que visa universalizar o acesso à internet em alta velocidade na educação básica. Para 2020, o MEC destinou apenas R$ 100,3 milhões, o que equivale a menos da metade do orçamento disponível em 2019.
As perspectivas para o orçamento da educação em 2021 são ainda piores. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação calculou que o orçamento aprovado precisa de um adicional de R$ 36,8 bilhões para fomentar ações voltadas ao ensino à distância e à reabertura das escolas com segurança. A organização baseou seus cálculos no CAQ (custo aluno-qualidade), um índice que estabelece o custo mínimo por aluno necessário para garantir uma educação de qualidade.

“Não só não adicionaram os R$ 36,8 bilhões, como aprovaram um orçamento 27% melhor do que o do ano passado”, disse Pellanda. “E então, Bolsonaro bloqueou outros R$ 2,7 bilhões do orçamento de 2021.” Ao fim, o governo federal alocou um total de R$ 74,56 bilhões para a educação em 2021, um valor muito abaixo dos R$ 102,27 bilhões alocados no ano anterior.
Nesse cenário, a liberação de R$ 3,5 bilhões em fundos de emergência para prover acesso à internet e equipamentos para alunos e professores chega em um momento crucial para a educação, enquanto o país ainda luta para controlar a pandemia.
“Essa lei dá aos estados e municípios recursos para fornecer a milhões de alunos e professores acesso à internet, computadores, dispositivos e o treinamento necessário para a educação à distância. Isso nos dá mais tempo para lutar para que todos os professores e trabalhadores da educação sejam vacinados e possam voltar às salas de aula com segurança.”
Como em muitos países, a pauta da educação é frequentemente capturada pela agenda política. Por isso, é preciso entender os efeitos negativos disso na área.
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De acordo com um estudo realizado pela Unicef em parceria com o Cenpec Educação, o fechamento das escolas no Brasil em novembro de 2020 deixou 5,1 milhões de crianças entre 6 e 17 anos sem acesso à educação. O estudo confirmou que a falta de acesso afeta mais crianças de comunidades negras, pardas e indígenas. Dessas 5,1 milhões de crianças, 69,3% vêm de comunidades marginalizadas.
No recorte por região, a disparidade também é evidente: o Norte tem a maior proporção de crianças sem acesso à educação, 28,4%, seguido pelo Nordeste (18,3%), Sudeste (10,3 %); Centro-Oeste (8,5%) e Sul (5,1%).
Florence Bauer, representante da Unicef no Brasil, afirmou no estudo que “O país corre o risco de regredir duas décadas na melhoria do acesso de meninas e meninos à educação; retrocedendo aos números da década de 2000.” Embora não seja específica para o Brasil, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) elenca uma longa lista de condições adversas associadas ao fechamento de escolas em decorrência da pandemia.

Outro aspecto a ser considerado é que as escolas públicas brasileiras oferecem mais do que apenas educação no sentido estrito. Para muitos estudantes, elas são o espaço de acesso a uma série de serviços sociais de que muitas famílias brasileiras necessitam. De acordo com Catarina de Almeida Santos, coordenadora do Comitê no Distrito Federal da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as escolas oferecem aos alunos e suas famílias serviços vitais que eles simplesmente não conseguem em nenhum outro lugar.
No Brasil, a escola pública é o único lugar onde muitos alunos têm acesso a alimentos, materiais didáticos, programas governamentais e de ONGs, além de proteção contra o trabalho infantil, o tráfico de drogas ou a violência doméstica. É um lugar de proteção social e acesso a direitos. O fechamento das escolas escancara e agrava os problemas sociais que existiam antes da pandemia.
Catarina de Almeida Santos, coordenadora do Comitê no Distrito Federal da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Acesso à internet no Brasil em números
O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), acompanha a adoção das tecnologias da informação e comunicação (TIC) em todo o Brasil desde 2005. Dados coletados entre outubro de 2019 e Março de 2020 mostram que apenas 71% das famílias brasileiras tem acesso à internet atualmente. Isso significa que 20 milhões de lares não têm internet no Brasil.
Nas áreas urbanas, 75% das famílias têm acesso à internet e 25% não. Os três principais tipos de conexão em domicílios urbanos incluem banda larga fixa (61%), cabo de TV/fibra óptica (44%) e 3G/4G móvel (27%). Já na área rural, a exclusão digital aumenta: apenas 51% dos domicílios têm acesso à internet. A conectividade nos domicílios rurais se divide da seguinte forma: banda larga fixa (48%), cabo de TV/fibra óptica (16%) e 3G/ 4G móvel (33%).
No Painel ICT COVID-19: Pesquisa na web sobre o uso da internet no Brasil durante a nova pandemia de coronavírus, o Cetic observou disparidades de classe social também entre alunos com 16 anos ou mais em termos de dispositivos que os estudantes dispunham para acessar atividades de aprendizagem remota.

Na classe AB, 70% dos jovens usam laptops e 46%, computadores desktop. Passando aos alunos da classe C, esses percentuais caem para 32% e 19%, respectivamente. Entre os alunos mais pobres, das classes DE, apenas 12% usam os dois dispositivos.
O uso de dispositivos móveis para acessar aulas remotas também é frequente (37%). Enquanto 22% dos jovens da classe AB recorrem aos dispositivos móveis para assistir às aulas, entre os jovens das classes C e DE esse percentual vai a 43% e 54%, respectivamente.
É importante observar que esses números fornecem apenas um recorte parcial, uma vez que não refletem os alunos com menos de 16 anos. Também não consideram os alunos que não podem comprar nenhum tipo de dispositivo. Além disso, Pellanda apontou que simplesmente acessar a internet não garante uma experiência de educação remota decente.
“Muitos alunos têm acesso à internet, mas é com apenas um celular”, disse Pellanda. “Esse não é um dispositivo adequado para acessar as plataformas educacionais.”
“A configuração da LAN”
E o que acontece agora que o governo federal liberou esse novo fundo de emergência de R$ 3,5 bilhões? Políticas públicas demandam implementação em escala nacional.
De modo geral, o governo federal irá distribuir esses recursos aos governos estaduais, que irão contratar fornecedores locais de internet ou transferir os recursos aos municípios. Os municípios, por sua vez, trabalharão com provedores locais para fornecer conexão de internet para professores e alunos.
Aqui, as coisas ficam interessantes. De acordo com Daniel Canabarro, gerente de política regional da Sociedade da Internet para a América Latina e o Caribe, são os pequenos provedores locais, que trabalham com banda larga fixa, a cabo ou de fibra óptica, que levarão internet às áreas mais remotas e geograficamente desafiadoras do país – e não as grandes empresas de telecomunicação e de banda larga móvel.

“Ao contrário de outros países latinoamericanos, o Brasil tem um mercado próspero para banda larga fixa. Temos algo entre 8.000 e 9.000 pequenos provedores locais e eles estão expandindo o alcance da internet para as áreas mais remotas do país.”
Provedores locais de banda larga fixa implantaram mais de 60% dos cabos de fibra óptica do país e, segundo Canabarro, a taxa de crescimento dos provedores locais que oferecem banda larga fixa ultrapassou em muito a dos provedores de internet móvel.
“Em 2014, 49% dos provedores locais registrados no Brasil ofereciam internet banda larga fixa, e esse número saltou para 78% em 2017. Os provedores de tecnologias sem fio e internet móvel perceberam um aumento de apenas 1% no mesmo período, subindo ligeiramente de 84% em 2014 para 85% em 2017.”
Outra curiosidade sobre o acesso à internet no Brasil: embora cerca de 98% da população tenha cobertura de internet, isso não significa que eles tenham serviço de internet. O sistema de leilões de faixas de frequência estipula que, por exemplo, a empresa de telecomunicações X cobrirá uma certa região geográfica. Porém, ela não precisa necessariamente oferecer serviço a todas as pessoas que vivem naquela região.
Os motivos para não implantar uma infraestrutura de banda larga móvel de maior alcance incluem desafios geográficos, mas o principal motivo é, segundo Canabarro, o retorno financeiro baixo que as empresas obteriam das pequenas populações que vivem nessas áreas remotas.
A banda larga móvel atingiu um certo patamar porque já cobre todas as áreas onde as grandes operadoras têm um bom retorno de seus investimentos. A internet de banda larga fixa está avançando precisamente nos lugares onde as operadoras de telefonia móvel não operam.
Daniel Canabarro, gerente de política regional da Sociedade da Internet para a América Latina e o Caribe
A expansão da banda larga fixa é um passo essencial para tornar o acesso à Internet disponível para milhões de alunos e professores. E é uma das razões pelas quais o recente projeto de lei faz uma estipulação muito importante. “Não é por acaso que esta nova lei permite internet de banda larga fixa subsidiada. Se não houver conectividade móvel disponível na região, os governos locais podem comprar banda larga fixa de provedores locais”, diz Canabarro.
A nova lei contém outra disposição que ele considera um marco: autoriza estados e municípios a comprar internet fixa para as comunidades.
Segundo Canabarro, a inclusão digital hoje é prejudicada pela forma tradicional como o sinal de internet é distribuído geograficamente – por meio de modelos de rede que começam no backbone em direção à periferia. Alcançar populações que vivem em regiões mais afastadas por meio desse modelo de conectividade requer incentivos governamentais para atrair empresas privadas.
Mas há modelos alternativos. De acordo com Canabarro, um modelo municipal de banda larga, por exemplo, tem uma abordagem diferente e matizada. Ele conecta a comunidade na margem e então se move na direção inversa ao centro do backbone. “Uma rede que usa o modelo de banda larga municipal gerenciada por comunidades locais oferece uma opção que não precisa depender de incentivos do governo ou das margens de lucro de empresas privadas”, explica.
Já existem redes comunitárias em algumas partes do Brasil, mas Canabarro disse que precisam de ajuda para se conectar ou melhorar a conexão. E o dinheiro dessa nova lei tem potencial para promover mudanças significativas. “Esta nova lei vai servir a alunos e professores, mas também pode ajudar as comunidades em geral”, disse Canabarro. “Esse é o alcance real da lei.”