O Facebook acena que o metaverso será a próxima parada para os seus mais de dois bilhões de usuários. No jogo Fortnite, milhões de adolescentes se reúnem todos os dias e, entre um tiroteio e outro, ficam à toa e assistem a shows de artistas como Ariana Grande e Lil Nas X. No Axie Infinity, criaturas e propriedades digitais movimentam uma mini-economia própria, baseada em dinheiro de verdade. Tudo isso parece moderno, quase um vislumbre do futuro, mas talvez seja apenas repeteco. O Second Life está (ainda está?) aí para provar.
Enquanto editava uma matéria, topei com o arquivo do Estadão referente ao Second Life, um delírio coletivo que acometeu parte da humanidade conectada à internet nos anos 2000. Houve momentos em que o simulador de vida — não é um jogo! — criado pela Linden Labs parecia ser o futuro. Até que não pareceu mais.
É algo muito humano, esse tipo de crença no que aparenta ser moderno, arrojado, futurista. Quando isso envolve ganhar uns trocados sem fazer muito esforço, fica ainda mais fácil acreditar. Nesse sentido, Second Life despontou como um novo Novo Mundo no alvorecer do terceiro milênio. E com as vantagens de que desta vez não seria preciso dizimar e/ou escravizar populações nativas nem lidar com inconvenientes da realidade material, como ter que atravessar oceanos a bordo de navios capengas, enfrentar doenças desconhecidas ou arriscar a vida em guerras, para conquistar riquezas inimagináveis.
Embora tenha sido lançado em 2003, o Second Life levou alguns anos para ganhar tração. No Brasil, o simulador desembarcou em abril de 2007, trazido pela Kaizen Games. Naquele maravilhoso arquivo do Estadão, a primeira notícia é daquelas dignas de um Pulitzer: “Banda NX Zero toca no Second Life e enfrenta protesto”, em 7 junho de 2007.
Após um atraso de duas horas, os avatares do NX Zero enfim subiram ao palco. E alguns dos cem (sim, cem; um, zero, zero) espectadores, também subiram, gerando o caos, ainda que outros membros da plateia tenham agido “como se estivessem em um show real, e assistiram à apresentação do chão, dançando”, ressaltou o repórter (uma pessoa real) Lucas Pretti.
Infelizmente, alguns fãs vandalizaram o espaço, pixando a palavra “gay” várias vezes no cartaz do NX Zero, coisa que em 2007 era encarado como um tipo de xingamento. A apresentação, que na realidade eram arquivos de MP3 tocados dentro do Second Life, foi encerrada antes da hora. “Foi o show mais diferente da minha vida, nunca imaginei que tanta gente fosse nos ver aqui”, disse Di Ferrero, o incrédulo vocalista do NX Zero.
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Poucos dias depois, o próprio Estadão virou notícia: “Estadão contrata avatares para o Second Life”. “São duas vagas para um jornalista e um estagiário que trabalharão no atendimento a avatares de outros jogadores dentro do game 3D criado pela empresa norte-americana Linden Lab.” Pobre jornalismo, não pode ver uma barca furada que já pula de cabeça.
O jornal não foi o único que comprou a ideia do metaverso da Linden Labs. Naquele agitado período, líamos notícias como “Consultorias ajudam franquias a entrar no Second Life” e “Unibanco estreia agência no Second Life Brasil”. Nos jogos Pan-Americanos do Rio, a torcida pôde falar com os atletas dentro do simulador, ainda que vez ou outra alguma intempérie atrapalhasse. O chat com o nadador multi-medalhista Tiago Pereira, por exemplo, miou devido a um problema com a conexão: “Houve início de protesto por parte dos avatares, cerca de 40, logo contornado pela organização da Ilha Brasil, que resolveu distribuir kits com camisetas e bonés para quem estivesse lá”, diz a notícia, que fez questão de pontuar que “os kits eram reais e seriam entregues na casa de cada torcedor”. Aí sim!
A reprodução do mundo físico no Second Life continuou de vento em popa, segundo a cobertura do Estadão. O jornal deu destaque às igrejas do metaverso digital, ao seu próprio jornal virtual, o “MetaNews”, a uma exposição do Itaú Cultural, a investimentos de universidades brasileiras no espaço e a mais shows — desta vez, de uma tal de Claudia Leitte do Babado Novo, e da Pitty.
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Se hoje o Twitter — para alguns um tipo particular de metaverso — auxilia o senador Renan Calheiros (MDB-AL) nos trabalhos da CPI da pandemia, na qual é relator, em 2007 um grupo de brasileiros iniciou a campanha “Agora conta, senador!” dentro do Second Life contra o mesmo Renan, então presidente da Câmara. “Cartazes foram distribuídos pelo metaverso com dizeres que cobram as denúncias prometidas pelo parlamentar”, reportou Lucas Pretti, repórter que, aparentemente, era o setorista de Second Life do Estadão. “O protesto foi organizado pelo advogado brasiliense Paulo Ferraz (avatar Accountin Pekable) na ilha Help Brasil, um dos territórios brasileiros do mundo virtual. ‘Quero que todos os avatares brasileiros participem desse movimento cívico’, diz. Ele disponibilizou as imagens usadas no cartaz para download.”
Um projeto ambicioso como o Second Life, cujo objetivo é replicar o mundo real dentro da internet, não passaria ileso das mazelas que nos afligem cotidianamente aqui fora. A profusão de novidades que chegava ao público brasileiro trouxe de carona alguns problemas. “Baixo crescimento ameaça economia do Second Life”, “Pan também atrasa ‘obras’ no Second Life”, “EUA vão ao Second Life em busca de terroristas” e “Empresas abandonam Second Life, diz ‘Los Angeles Times’” talvez tenham sido prenúncios de que a febre teria vida curta. Outros, mostravam que a perversidade humana não está limitada aos átomos: “‘Crianças’ oferecem sexo virtual no Second Life por dinheiro”.
De qualquer forma, ainda havia dinheiro (lícito) a ser feito no Second Life e, em outubro de 2007, a Kaizen Games, distribuidora do jogo no Brasil, anunciou a oferta de ilhas inteiras por módicos R$ 4,9 mil, mais um imposto mensal, tipo um IPTU do metaverso, de R$ 990 — em valores atualizados, R$ 10,6 mil e R$ 2,1 mil.
As notícias do Second Life no arquivo do jornal rareiam a partir do final de 2008. Foi desinteresse? Faltou investimento? Não sei. Em 2017, a Linden Labs lançou outro simulador, este baseado em realidade virtual. Sansar teve vida curta e acabou vendido em março de 2020. Second Life, por incrível que pareça, continua no ar. Em 2015, já há muito esquecido pelo Estadão e outros jornais, ele faturou US$ 60 milhões, o que não é desprezível.
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Na última meia década, o Second Live só apareceu na imprensa mainstream em artigos nostálgicos (como este) ou em situações excepcionais. A última menção a ele no arquivo do Estadão é de agosto de 2020, uma matéria traduzida do New York Times que fala de executivos que trocaram o Zoom por ambientes imersivos durante a pandemia da COVID-19.
Perto das audiências que algumas (no plural) plataformas alcançam hoje, os números do Second Life não irrisórios. No auge, em 2013, chegou a ter um milhão de usuários ativos. Fora esse detalhe, o paralelo entre elas parece perfeito. Tudo que as dominantes de hoje estão tentando fazer, o Second Life tentou, de alguma forma, lá atrás. Só que seria um equívoco aplicar a essas similaridades uma visão determinística, ou seja, sentenciar que Fortnite, Axie Infinity e o metaverso do Facebook estão fadados ao fracasso por isso. O mundo é outro, há mais gente online e disposta a mergulhar (e a gastar) em coisas que não existem fisicamente.
O risco é justamente esse, de que em algum momento os elementos para metaversos perfeitos se alinhem e um deles se torne onipresente, inescapável, como as melhores distopias que cunharam o termo demonstram — ou, para ser exato, nos alertam.