O Facebook está tentando mitigar conteúdo enganoso em suas plataformas após críticas. Foto: Shutterstock
Tecnologia

O que é o projeto das fake news no Brasil e como isso afeta as redes sociais no país?

O LABS ouviu especialistas para falar sobre o projeto das Fake News no Brasil e por que esse assunto ganhou relevância na América Latina

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O Senado brasileiro aprovou recentemente um projeto de lei que pretende endurecer o combate às notícias falsas e instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O texto tem sido criticado por especialistas, como o advogado especializado em direito digital Ronaldo Lemos, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que dizem que a proposta é não só ineficiente, por se concentrar em indivíduos e não em organizações criminosas, como também contém trechos que podem gerar efeitos colaterais desastrosos.

Com a discussão agora dependendo da Câmara dos Deputados, aliados do presidente Jair Bolsonaro trabalham para que deputados favoráveis à atual administração barrem o projeto.

Desde o período pré-eleitoral, Bolsonaro é alvo de controvérsias relacionadas a notícias falsas. E essa relação ganhou novo capítulo na última quarta-feira, quando o Facebook anunciou a suspensão de uma rede de desinformação ligada a ele, seus filhos e assessores

Quais são os impactos do projeto contra Fake News no Brasil?

A versão mais nova do projeto, escrita pelo deputado Angelo Coronel, determina, entre outros pontos, que nos casos de denúncia, as plataformas com mais de 2 milhões de usuários devem solicitar dos membros documentos para comprovar identidade. 

Haveria também um limite do número de contas que cada usuário pode controlar e todas as contas movidas por bots deverão ser identificadas. Além disso, as empresas de redes social são obrigadas a ter sede no Brasil. Até meados de 2019, o WhatsApp não tinha representação oficial no País. 

Mas, a regulação dessas redes não está bem redigida, segundo empresas de tecnologia e especialistas, que veem no projeto excessos e limitação de liberdades civis. 

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O LABS procurou Ronaldo Lemos, advogado especializado em direito digital, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Comitê de Supervisão do Facebook, para opinar sobre o texto. Uma das previsões mais contestadas nas primeiras versões do texto-base, a exigência de documentos oficiais para criar contas em redes sociais, foi rejeitada pelos senadores. Entretanto, segundo Lemos, o projeto que foi aprovado ainda assim “é muito ruim”. “É um projeto longo, redundante e cuja maioria dos dispositivos não terão eficácia para combater o problema das campanhas de desinformação”, afirma.

“O projeto hoje trata 100% de conteúdo e 0% do combate a redes profissionais de desinformação. Em outras palavras, ele ataca as folhas e não a raiz do problema, que é o combate a quem financia de forma oculta essas campanhas de desinformação. Se você vai atrás de conteúdos individuais, é como enxugar gelo”, diz Lemos. Para ele, um caminho eficaz seria a criação de mecanismos para investigar e punir quem investe recursos de forma oculta e pratica ilícitos, como falsidade ideológica, para espalhar desinformação. 

Ronaldo Lemos, advogado especializado em direito digital e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro membro do Comitê de Supervisão do Facebook. Foto: Facebook/Ronaldo Lemos

Seguir quem financia – propositadamente ou inadvertidamente – propagadores de notícias falsas é uma maneira de minar fake news, como faz o site ativista Sleeping Giants. O perfil alerta marcas sobre anúncios programáticos em páginas com desinformação. Lemos ressalta que essas campanhas de desinformação profissional custam muito dinheiro. “Falar com muita gente, seja na televisão ou na internet, sempre custa caro. É preciso combater esse tipo de financiamento”. 

Portanto, ele acredita que um projeto curto e direto ao ponto, que fizesse o “follow the money” seria mais benéfico para o País. “Desde 2014 há evidências claras de uso de propaganda computacional nos processos eleitorais do Brasil. Esse tipo de regulamentação deve ser cirúrgica e precisa. A lei atualmente em discussão é prolixa, longa e possui muitos efeitos colaterais”, opina. 

Pressões pela regulação de redes sociais existem há tempos

Nos últimos anos, o Facebook tem sofrido pressão pública para que faça, de alguma maneira, uma moderação de conteúdo em suas plataformas, o que inclui também o WhatsApp, aplicativo comprovadamente usado para a disseminação de notícias falsas durante as eleições presidenciais brasileiras de 2018. 

Dois anos antes, nos Estados Unidos, pesquisadores já tinham apontado que postagens falsas no Facebook haviam ajudado a alavancar a campanha do republicano Donald Trump. Na ocasião, a big tech foi acusada de interferência e desinformação, de acordo com o The New York Times

Se nos Estados Unidos, o CEO da companhia, Mark Zuckerberg, teve de ir ao Congresso prestar esclarecimentos, no Brasil o debate, um tanto atrasado, resultou em investigações comandadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e em discussões em torno de uma regulamentação das plataformas no país capaz de barrar campanhas de desinformação.

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Facebook CEO Mark Zuckerberg. Foto: Shutterstock

O impacto das notícias falsas é tanto que já começa a minar a confiança do consumidor latino-americano nas redes sociais. É o que aponta um levantamento encomendado pela Sherlock Communications e realizado pela Toluna em cinco importantes mercados da região: México, Brasil, Argentina, Colômbia e Chile.

Segundo o relatório, quase nove em cada 10 latino-americanos pedem que o Facebook remova publicidade política enganosa. Essa visão é mais forte no Peru (88%), seguido de Colômbia, México e Brasil (todos 86%). 

Além disso, três em cada quatro consumidores na América Latina (77%) dizem que o Facebook deve ser responsabilizado legalmente pela publicidade paga que aparece na plataforma. 

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Em conversa com o LABS, Alasdair Townsend, sócio-gerente da Sherlock Communications, disse que, dada a vasta popularidade do WhatsApp na região em comparação à Europa, as redes de notícias falsas são maiores e mais fortes na América Latina. 

“Ao contrário de outras redes públicas como o Facebook ou o Twitter, o WhatsApp é criptografado e, essencialmente, uma rede oculta, por isso é extremamente difícil ver onde as informações falsas estão sendo compartilhadas. O Facebook tem demorado a tomar medidas para resolver isso (como limitar o número de pessoas para as quais uma mensagem pode ser encaminhada) e, nesse ambiente, é impossível imaginar que maus atores não estejam capitalizando”, afirmou.

Segundo Townsend, o levantamento mostra que o público latino-americano acredita que o Facebook deva proteger suas plataformas das informações erradas, e que o consenso é que a empresa está falhando nisso. 

Quase 90% acreditam que o Facebook deve remover mentiras na publicidade política, o que mostra que isso é visto como um problema de qualquer lado do espectro político de onde você vem. Esta não é uma questão política de direita ou esquerda, é uma questão do Facebook.

Alair Townsend, sócio-gerente da Sherlock Communications
Fonte: Evolução da Mídia Tradicional na América Latina por Sherlock Communications

A ação da big tech contra os aliados de Bolsonaro é uma resposta a essa pressão pública por uma postura contra as notícias falsas. E a empresa não agiu só no Brasil. O Facebook removeu quatro redes distintas por violação à política da empresa “contra interferência estrangeira e comportamento inautêntico coordenado” no Canadá, Equador, Ucrânia e nos Estados Unidos. Segundo o Washington Post, nos EUA, inclusive, uma das redes de manipulação derrubadas foi a de Roger Stone, um dos principais aliados ao presidente americano Donald Trump.

Fonte: Evolução da Mídia Tradicional na América Latina por Sherlock Communications

O que ameaça mais a democracia: desinformação ou coleta massiva de dados? 

O levantamento da Sherlock Communication indica que 33% dos latino-americanos, em média, acreditam que Facebook, WhatsApp e Instagram representam uma ameaça para eleições democráticas e justas, enquanto cerca de 32% pensam que não.

Townsend afirmou ao LABS que é difícil dizer exatamente se os atos do Facebook podem afetar as eleições na região, mas a pesquisa mostrou que 81% dos entrevistados disseram que aprovam a proibição do Twitter de publicidade política paga em sua plataforma – avaliando a empresa melhor do que plataformas que não adotaram uma posição explícita. “As plataformas do Facebook têm um alcance enorme em toda a região; portanto, qualquer ação que elas façam ou não tomem, terá algum tipo de impacto”, disse ele.

Fonte: Evolução da Mídia Tradicional na América Latina por Sherlock Communications

Há pontos no projeto de lei do Brasil que estão em discussão e que também estão sendo discutidos em outros países, como é o caso da rastreabilidade (“traceability”) de mensagens enviadas por meio de aplicativos de mensagens pessoais. Ronaldo Lemos pondera que essas medidas não são capazes de atingir redes organizadas de desinformação e possuem um número elevado de efeitos colaterais negativos.

O G1 e o Nexo mostraram que big techs (Facebook, Google, Twitter) enviaram um parecer ao Senado classificando a lei que prevê a criação de bancos de registros de mensagens e usuários, como “um projeto de coleta massiva de dados” que “põe em risco a privacidade e segurança de milhares de cidadãos”.

Ainda, o diretor de Políticas Públicas do WhatsApp para a América Latina, Pablo Bello, em uma entrevista para a Folha de S.Paulo, disse que a existência dos registros de envios em massa criaria uma situação de monitoramento semelhante a uma “tornozeleira eletrônica em milhões de brasileiros”.

Em suma, “o projeto não diferencia fake news amadora da profissional”, na visão de Ronaldo Lemos. Ele acredita que a forma que o documento foi redigido pune muito mais cidadão individuais, que publicam falsidades maliciosamente ou por erro, do que redes profissionais de desinformação, campanhas financiadas e organizadas de fake news, que conseguem propagar falsidades para milhões de pessoas. Por ora, caberá à Câmara Federal a decisão de levar o projeto adiante ou não.

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