Até mesmos os grandes bancos brasileiros poderão usufruir do sandbox – “caixa de areia” em inglês, ambiente regulatório experimental para testar inovações – que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) colocou em consulta pública até o próximo dia 27 de setembro.
O sandbox é um conjunto de normas mais simples e com um menor nível de supervisão dos reguladores que permite que empresas desenvolvam e testem um modelo de negócio, produto ou serviço inovador.
Após o término da consulta pública, serão analisadas as contribuições e editada a norma definitiva. Em seguida, será constituído um comitê, que ficará responsável por fazer as chamadas dos empreendedores interessados em participar do sandbox. Os prazos para todo esse processo não foram fixados.
A definição do sandbox pretende abarcar tanto os projetos desenvolvidos por startups, fintechs e empreendedores em geral, quanto os projetos desenvolvidos por grandes empresas já estabelecidas em seus mercados. O objetivo, segundo a autarquia, é assegurar tratamento isonômico às iniciativas empreendedoras independentemente do setor ou porte.
“Não há limitação e nem é destinado a um tipo específico de empresa”, esclarece Antonio Berwanger, superintendente de desenvolvimento de mercado da CVM ao LABS. Ele explica que o que serão testados são os modelos de negócio para a prestação de serviços de uma atividade regulada pela autarquia, e não as empresas propriamente ditas.
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A definição do que é inovação inclui a adoção de novas tecnologias como inteligência artificial, registro distribuído (distributed ledger), aprendizado de máquina, negociação algorítmica, realidade aumentada, big data e analytics, internet das coisas e dispositivos vestíveis. Mas não de forma exclusiva.
O sandbox também poderá ser acessado por modelos de negócio que pretendam desenvolver inovações de cunho predominantemente mercadológico, quer pelo lançamento de novos produtos e serviços, quer pelo aprimoramento de produtos e serviços já oferecidos no mercado.
Inicialmente, os testes poderão ter a duração de um ano. Ao final desse prazo, a empresa terá três opções: receber uma licença definitiva; encerrar o projeto, se ele se mostrar inviável; ou pleitear a prorrogação dos testes por mais um ano, se assim a CVM considerar necessário.
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Modelo brasileiro terá o britânico como base e será feito em ciclos
O sandbox é relativamente novo, mesmo globalmente, tendo começado a ser implementado por Reino Unido, Austrália e Singapura em 2016. O Reino Unido, que servirá de base para o modelo de sandbox optou por ciclos ou grupos de participantes específicos (cohorts, no termo em inglês), promovidos pela Financial Conduct Authority (FCA). A iniciativa já está no 5º ciclo. Anunciado em abril deste ano, esse ciclo recebeu o maior número de propostas de participação até agora: 99 interessados.
No primeiro ciclo, 75% das empresas aceitas conseguiram conduzir seus testes; 90% das que completaram os testes pretendiam seguir adiante com o lançamento do produto ou serviço no mercado; e a maioria dos participantes que recebeu autorizações provisórias obteve registros definitivos. Além disso, 40% dos participantes receberam aportes durante ou após os testes.
Mas existem vários modelos de sandbox sendo testados no mundo. Na Singapura, por exemplo, o modelo é contínuo, e não em ciclos, e não tem o lançamento de editais. O processo é conduzido pela Monetary Authority of Singapore (MAS).
No México, a Comisión Nacional del Sistema de Ahorro para el Retiro (CONSAR), o ambiente de provas e pilotos (sandbox) foi lançado em março deste ano e é voltado para fintechs.
Já em Hong Kong, o objetivo é promover inovações transetoriais. Por isso, a iniciativa por lá foi lançada em 2017 pela Securities and Futures Commission (SFC) com integração operacional com os sandboxes dos reguladores prudencial (Hong Kong Monetary Authority – HKMA) e securitário (Insurance Authority – IA).
“Estamos nos inspirando no modelo do Reino Unido, com um tempo para recebimento de propostas, análise e seleção de participantes. Dentro de um número de participantes que sejamos capazes de monitorar e nos beneficiarmos de um acúmulo de experiência em relação à atividade que está sendo conduzida”, diz Berwanger. A minuta não define um número de participantes.
Vamos deixar a cargo do Comitê que será criado a decisão de definir ou não um número ou aguardar o recebimento de propostas e eventualmente realizar cortes.
Antonio Berwanger, superintendente de desenvolvimento de mercado da CVM.
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A autarquia também procurará realizar uma coordenação com os demais reguladores. Desde o final de 2017, os quatro principais órgãos de regulação financeira brasileiros – Banco Central, CVM, Superintendência de Seguros Privados (Susep) e Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) – vêm estudando a regulação de um sandbox. Além da CVM, que saiu na frente, BC e Susep preparam-se para lançar seus modelos nas próximas semanas.
“Essa coordenação já vem ocorrendo no âmbito do Laboratório de Inovações Financeiras [LAB]. Foi feito um documento de diretrizes, distribuído aos reguladores, e temos conversado com o BC a Susep para um alinhamento. Mas cada regulador tem um perímetro de competência em que só ele pode conceder a autorização”, ressalta Berwanger.
Do crowdfunding ao ICO de moedas digitais
Entre as startups e fintechs o clima é de otimismo. Bruno Diniz, diretor-presidente do Comitê de Fintech da Abstartups, diz que as entidades representativas participaram ativamente das discussões em torno do sandbox, no grupo de trabalho do Laboratório de Inovação Financeira (LAB), criado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Associação Brasileira do Desenvolvimento (ABDE) e CVM.
“A CVM saiu na frente e avaliamos positivamente o documento que foi à consulta pública. Susep e o BC também participam do LAB. A ideia é criar mecanismos para que os três sandbox conversem entre si, pois podem surgir negócios que entrem na esfera dos três reguladores”, observa Diniz.
Diego Perez, diretor-executivo da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintech) e co-fundador do crowdfunding Start Me Up (SMU), considera a minuta bastante completa. Um fato positivo é seguir o modelo do Reino Unido, o de maior sucesso. A ABFintech criou um grupo de trabalho entre os associados e um grupo de juristas para elaborar os pleitos.
“A ideia é aglutinar os [pleitos] que são regulados pela CVM – equity crowdfunding, robo advisor, peer to peer lending, e investimentos – e discutir qual ponto da norma pode ser ajustado ou modificado”, sinaliza Perez.
Ele observa que na regulação do crowdfunding, informalmente, já existia um modelo de experimentação. Agora estuda-se a regulamentação de um mercado secundário. O tema já começou a ser discutido entre as empresas do segmento e nada impede que venha a ser regulado em paralelo.
“Hoje a tecnologia blockchain é a que permite o maior ganho de eficiência e democratização do mercado de capitais e pode vir a ser usada no mercado secundário de crowdfunding”, diz Perez.
Carlos Russo, diretor de investimentos da Transfero, diz que o sandbox poderá trazer clareza regulatória aos modelos de operação da empresa, que atua com moedas digitais. São três modelos de negócio: mesa de operações voltada para clientes institucionais para compra e venda de moedas digitais; gestão de recursos em ativos digitais; e tokenização de ativos. Os dois últimos estão na alçada da CVM.
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A gestora de ativos digitais está abrindo um fundo off shore que posteriormente estará relacionado a um fundo no Brasil. E a operação de tokenização lida com emissões de moedas digitais (ICO – Initial Coin Offering).
“Hoje a CVM isenta a gestora de recursos de ativos digitais de qualquer licença, desde que não atue com ativos mobiliários. A gente imagina que a autarquia avalie incorporar o modelo de gestora no arcabouço regulatório de outras gestoras”, avalia Russo.
No caso da tokenização, por conta da insegurança jurídica, nenhuma empresa até hoje se aventurou a realizar ICO no Brasil. Há dois tipos de enquadramentos: emissão de utility token, que não é um ativo imobiliário; e emissão de token com características de ativo imobiliário, o que exige um processo semelhante a de um IPO tradicional. “Por isso aconselhamos nossos clientes a fazerem as emissões no exterior”, justifica Russo.
Ele informa que vai propor na consulta pública que a CVM adote para a tokenização de ativos uma instrução normativa semelhante à IN 588 que regulamento o crowdfunding, que prevê que empresas com receitas de até R$ 10 milhões/ano podem acessar, por meio de crowdfunding, o capital de investidores.
Crédito e open banking também podem avançar com sandbox
Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), diz que o sandbox da CVM também pode beneficiar o segmento de crédito, pois em todo o mundo há uma tendência de aproximação do crédito com o mercado de capitais.
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“No exterior há integração com o mercado de capitais por meio de securitização de recebíveis e fundos de investimento de crédito. Já temos algumas experiências com FIDC (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios), e o sandbox da CVM poderia simplificar o uso desses dispositivos”, argumenta Pereira.
Rafaella de Palermo Peres, diretor jurídica da Guiabolso, diz que um dos benefícios do sandbox é criar um ambiente amigável às inovações e de concorrência, em benefício dos consumidores.
“Hoje não há incentivos para que os bancos inovem porque é um sistema concentrado em que a posição dominante está consolidada. Uma vez que se dá abertura para esse tipo de movimento, o objetivo é estimular todos os players tanto os grandes quanto os pequenos”, afirma Peres.
Alexandre Lara, fundador e CEO da Blue 365, informa que embora a empresa não esteja sujeita à supervisão da CVM, a iniciativa de lançar o sandbox é bem-vinda. A 365 opera com análise do comportamento do cliente e como ajudá-lo a negociar seus débitos e recuperar seu crédito.
“Estamos aguardando uma maturidade maior da iniciativa, para testar projetos de open banking. Existe uma oportunidade de atender o cliente melhor, pois saber mais detalhes de seu relacionamento com a instituição financeira, nos qualifica de uma forma melhor”, diz Lara. Ele ressalta que a Blue 365, como lida com análise de dados dos clientes, está sujeita à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). “Temos de obter o opt in [aceitação] do cliente e atuar com clareza e transparência para que ele entenda o uso de sua informação”, diz Lara.