Dia desses um leitor perguntou: “alguém aqui, além de mim, está com FOMO [sigla para fear of missing out, ou medo de ficar de fora] de podcast?” A massificação do formato nos últimos dois anos foi balizada pelo surgimento de muitos bons programas. Com efeito, ouvir tudo que nos parece interessante tornou-se um desafio por si só e, para muitos de nós, mais uma fonte de desconforto, daquela sensação de estar ficando para trás.
Nesta semana, Daniel Ek, co-fundador e CEO do Spotify, foi questionado em uma entrevista do The Verge sobre a ameaça do Clubhouse, a nova rede social baseada em áudio em tempo real. Há quem argumente que o formato do Clubhouse pode ser para os podcasts o que as redes sociais foram para os blogs — uma simplificação que, pela facilidade e volume maiores, esmagou o formato anterior. Se essa hipótese se confirmar, todo (investimento pesado) que o Spotify tem feito em podcasts virará um enorme prejuízo.
Daniel iniciou sua resposta citando uma frase célebre de Andy Grove, ex-CEO da Intel: “Somente os paranóicos sobrevivem”. Em seguida, disse que sim, está prestando atenção no Clubhouse, da mesma forma que acompanha jogos como Fortnite, Minecraft e Roblox. “Todas as formas de mídia e entretenimento são minutos que poderiam ter sido gastos ouvindo áudio”, resumiu.
Não é só ele que pensa assim. Em janeiro de 2019, executivos da Netflix publicaram uma carta a acionistas detalhando as ameaças ao negócio. Para a surpresa de alguns, a maior preocupação da Netflix não era outros serviços de streaming, mas um video game. “Nós competimos com (e perdemos para) Fortnite mais do que com a HBO.”
Naquela ocasião, Reed Hastings, co-fundador, chairman e co-CEO da Netflix, disse em uma conferência com acionistas que o trabalho da sua empresa consiste em “destacar a Netflix de modo que quando nossos clientes tiverem um tempo livre, eles escolham gastá-lo com o nosso serviço”.
Além dos podcasts, hoje temos séries, filmes, livros, video games, redes sociais, Clubhouse, uma infinidade de distrações ao alcance de um clique para ocupar nosso tempo livre. É muita coisa, um volume humanamente impossível de acompanhar.
O lamento do leitor em relação à avalanche de podcasts que lhe sufoca não é acidental nem exclusivo dele. É, na verdade, estilhaços de uma disputa violenta entre as grandes empresas por nossa atenção que atingem o indivíduo
“Economia da atenção’ é uma descrição ideológica que tenta racionalizar o tratamento da comunicação como uma commodity”, sintetiza Rob Horning, editor da revista Real Life.
Lembrei, enquanto lia a entrevista de Daniel, do livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, escrito pelo ensaísta e crítico de arte Jonathan Crary. Nele, Crary argumenta que “o sono é a única barreira restante, a única ‘condição natural’ persistente que o capitalismo não pode eliminar”. Não por falta de empenho ou de tentativas, como as declarações de Daniel e Reed exemplificariam anos depois da publicação do livro, sem falar de outras tantas que as precederam e que serão tentadas no futuro.
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O digital, com suas infinitas possibilidade, onde os limites do tempo e espaço são obliterados, exacerba essa guerra pelo nosso tempo livre. O livro de Crary é de 2013, quando a vida online já parecia acelerada, mas hoje, tal qual um bom vinho e ao contrário da maior parte do “conteúdo” que nos mantém ocupados na internet, ele soa melhor, mais atual, quase profético.
O mercado, claro, já detectou o problema que ele próprio criou, e se apresentou para resolvê-lo em seus termos, ou seja, com mais tecnologia e de modo mais invasivo
Aplicativos de produtividade que prometem resolver o quebra-cabeça de agendas cheias, apps que resumem livros de 500 páginas em 12 minutos e que aceleram a reprodução de podcasts, algoritmos que automatizam tomadas de decisão de acordo com o “seu gosto”, pulseiras biométricas que monitoram o sono a fim de “otimizá-lo”. É uma pena que nada disso resolva o problema e, em muitos casos, piorem-no.
É como se a vida fosse um jogo de nós contra nós mesmos e em que o único desfecho possível, como argumenta Buyng-Chul Han no curtinho e excelente Sociedade do cansaço, é o fracasso, o “burnout”. Sociedade do desempenho, excesso de positividade.
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A despeito das tentativas de Spotify, Netflix e tantas outras empresas de se infiltrarem em cada minuto dos nossos dias, ainda temos o sono como um último refúgio coletivo e inescapável, uma espécie de paradoxo, em que nos libertamos por uma imposição da natureza, por um traço de humanidade indelével.
“O sono”, escreve Crary, “é uma afirmação irracional e intolerável de que pode haver limites à compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização”. Eis aí um bom ponto de partida para reclamarmos o tempo, o nosso tempo, longe daqueles que o querem a qualquer custo.