Ilustração: Felipe Mayerle/LABS
Tecnologia

Twitch da Amazon enfrenta outros gigantes na nova fase bilionária dos games

Tendências como streaming ao vivo, jogos gratuitos para celulares e e-sports geram novas oportunidades de negócios. Facebook, Microsoft e Google estão de olho no mercado de US$ 148 bilhões

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Em agosto de 2019, o norte-americano Tyler “Ninja” Blevins anunciou que estava deixando a Twitch, plataforma de streaming de games da Amazon que o catapultou à fama, para ingressar na Mixer, serviço rival da Microsoft

Blevins é o streamer mais famoso do mundo e fez seu nome jogando principalmente Fortnite, jogo de tiro no estilo “battle royale” que já conta com 200 milhões de jogadores registrados e transformou sua desenvolvedora, a Epic Games, em uma das forças gravitacionais do setor. Fortnite é gratuito e pode ser jogado em computadores potentes, consoles e até em celulares.

A transferência de Blevins com ares das de grandes jogadores de futebol reúne várias tendências, muitas delas já consolidadas, que chacoalharam o lucrativo mercado de video games nos últimos anos. Em 2019, segundo a consultoria especializada em games Newzoom, esse mercado movimentou US$ 148,8 bilhões, mais que o cinema e a música combinados, e ele deve continuar crescendo de acordo com as projeções. Jogos de alto padrão distribuídos gratuitamente, jogos para celulares, incontáveis horas de streaming ao vivo dos títulos mais quentes do momento e os e-sports, competições vistas por milhões de espectadores e que distribuem prêmios milionários. 

Nos anos 1990, “jogar video game” era uma atividade bem mais definida e restrita: bastava ter um console, comprar ou alugar fitas e jogar sozinho ou com os amigos no mesmo recinto. Hoje, há mais formas de se divertir e delas derivam inúmeros meios de se fazer dinheiro. Para usufruir de uma das maiores, a do streaming ao vivo, não é preciso sequer jogar: basta abrir um dos vários sites que oferecem esse serviço e assistir a outras pessoas, mais habilidosas e/ou carismáticas, desbravando universos virtuais. 

O comparativo temporal quem fez foi Alessandro Sassaroli, gerente de parcerias de gaming no YouTube para América Latina. “A gente joga video game no Brasil desde a década de 1970. Acho que estamos celebrando um momento que já vem se sedimentando há muito tempo”, diz o executivo. Acostumado a liderar os mercados onde atua, no streaming de games ao vivo o YouTube é o desafiante. A líder do setor é a Twitch, comprada em agosto de 2014 pela Amazon por US$ 970 milhões. 

Alessandro Sassaroli, gerente de parcerias de gaming no YouTube para América Latina. Foto: Divulgação

A outra guerra do streaming 

Se para muita gente o conceito de assistir por horas a fio a outra pessoa jogando ainda soa esquisito, para os streamers, como são conhecidos esses novos profissionais, a brincadeira há muito virou um negócio sério — e lucrativo. Blevins disse à CNN que faturou US$ 10 milhões em 2018. Para tirá-lo da Twitch, fontes da indústria estimam que a Microsoft lhe pague entre US$ 20 e US$ 30 milhões por ano. Poucos geram receita nesse nível, mas o número de streamers que se dedicam ao ofício e já recebem pelo trabalho de entreter plateias virtuais com suas habilidades e carisma segue crescendo.

A plataforma chinesa Nimo TV, no Brasil desde maio de 2019, prospecta streamers de destaque e fecha contratos de exclusividade para transmissões ao vivo. O diferencial da Nimo é focar em jogos para celular. “[A matriz chinesa] enxergou no Brasil uma grande fatia do mercado de games mobile que não estava sendo absorvida pelas outras plataformas atuantes”, explica Lin Chi, gerente de marketing da Nimo TV Brasil. (O serviço também está presente no México e na Argentina).

Um contrato comum da Nimo prevê um número determinado de horas transmitidas por semana ou mês e participações em eventos organizados ou apoiados pela Nimo. Há streamers individuais e equipes profissionais, gerenciadas como empresas e com jogadores dedicados integralmente ao ofício. A joia da coroa do serviço é a LOUD, criada em 2019 e com uma trajetória, até aqui, meteórica. Os valores pagos pela Nimo, fixos, não são divulgados.

YouTube é desafiante na área do streaming the games. Foto: Divulgação

Além dessa fonte, streamers na Nimo também recebem itens virtuais dos espectadores que podem ser trocados por dinheiro de verdade, o que dá uma chance aos aspirantes a já faturarem sem depender do modelo centralizado, de pagamento direto da plataforma.

A Nimo ainda luta para bater de frente com os tubarões da área. Ela não aparece no levantamento da consultoria StreamElements, que monitora o volume de horas assistidas em plataformas de streaming de games. Em 2019, a Twitch liderou absoluta com 9,3 bilhões de horas assistidas em sua plataforma no mundo inteiro, crescimento de 20% em relação a 2018. O YouTube ficou em um distante segundo lugar, com 2,7 bilhões de horas, aumento de 16%. Na sequência, ainda mais distantes, apareceram o Facebook Gaming (356 milhões de horas) e a Mixer, da Microsoft, com 354 milhões de horas. Apesar do volume menor, o crescimento relativo desses dois foi enorme: de 210% e 149%, respectivamente.

A “guerra do streaming”, que envolve empresas como Netflix, Disney, Amazon e Apple, ganha a maioria das manchetes e a atenção do público, mas há outro campo de batalha paralelo quase tão disputado quanto: o das plataformas de streaming de games. Às vezes eles se encontram, como quando Reed Hastings, CEO da Netflix, disse a acionistas que “competimos mais (e perdemos) com Fortnite do que com a HBO“, mas, no geral, é uma guerra à parte.

Infografia: Letícia Mulinari/LABS

A estratégia comum nas plataformas de séries e filmes, de se diferenciarem com exclusivos, se repete nas de games com uma diferença fundamental: os “títulos” são escassos e é mais difícil criar sucessos do nada. Por isso, as maiores, com bolsos fundos, promoveram um festival de contratações em 2019 digno das janelas de transferências do futebol europeu, algo que deve continuar por algum tempo.

O principal alvo é a líder Twitch, que em 2019 perdeu outras grandes estrelas além de Ninja, todas cooptadas por plataformas rivais. O YouTube, maior plataforma quando considerados os vídeos “não ao vivo” (VODs, no jargão), está tentando uma estratégia alternativa e cumulativa de assegurar os direitos de campeonatos inteiros, uma das grandes fontes de tráfego da Twitch. Há poucas semanas, a plataforma de vídeos do Google anunciou a conquista dos direitos exclusivos de transmissão dos campeonatos da publisher Activision Blizzard, com destaque para a liga de Call of Duty, título pago que emplacou 10 dos 20 jogos mais vendidos nos Estados Unidos na última década, e a liga de Overwatch, outro arrasa-quarteirão com mais de 50 milhões de jogadores. Até então, elas eram transmitidas na Twitch.

Apesar disso, a Twitch está focada e tranquila. “Ter concorrência é muito saudável, porque no final quem ganha é o usuário”, defende Wladimir Winter, diretor de conteúdo e parcerias da Twitch no Brasil. Para ele, apesar dos avanços das plataformas concorrentes, a Twitch se mantém na dianteira pelas ferramentas que oferece, o acompanhamento de perto dos seus streamers e pelas comunidades que são criadas ali. “Acho que é o grande diferencial em relação a outros players, a comunidade do Twitch é muito engajada, tem o senso de comunidade”.

Wladimir Winter, diretor de conteúdo e parcerias da Twitch no Brasil. Foto: Divulgação

De olho nas reviravoltas frequentes do mercado, Winter adianta que a próxima investida da Twitch deve ser no mercado mobile, fazendo o caminho inverso da Nimo. “A Twitch está muito interessada na audiência de mobile”, sem revelar mais detalhes.

Tendências que se misturam 

Um atalho que a Twitch pode pegar para acelerar sua entrada no segmento mobile se chama Free Fire, o grande sucesso da Garena, de Cingapura, com versões para Android e iOS. Em 2019, o joguinho gratuito amealhou as três maiores audiências ao vivo da história do YouTube no Brasil, virou carro-chefe da Nimo e levou todas as categorias que disputou no Prêmio eSports Brasil, iniciativa do Grupo Globo para fomentar os e- sports no país, incluindo o de melhor atleta do ano para Bruno “Nobru”, uma espécie de Messi dos games, titular da recém-formada equipe de Free Fire do Corinthians — sim, do time de futebol paulista.

Não seria um caminho inédito. Na realidade, colaborações entre os diversos players do ecossistema são comuns. A Razer, empresa norte-americana especializada em hardware  gamer, há tempos aposta nisso: “Lançamos diversos produtos customizados com temas de jogos de muito sucesso, como Overwatch, Gears 5 e Destiny 2“, explica Vitor Martins, diretor da Razer América Latina. Ele não revela números, mas diz que o Brasil responde por 50% das vendas da empresa na América Latina. 

Embora nascida como uma fabricante de acessórios, a Razer incorpora bem o ritmo dinâmico do setor, que exige adaptação e agilidade: a empresa já tem em seu portfólio notebooks, celulares, anunciou em janeiro o seu primeiro computador de mesa e não tem receio de apresentar produtos conceitos super futuristas, mesmo que eles jamais cheguem às prateleiras. “Proporcionamos um ecossistema completo de hardware, software e serviços para os gamers”, prossegue Martins. “Nosso objetivo é oferecer todas as ferramentas que o jogador precisa para buscar o máximo desempenho, conforto, imersão e personalização da sua experiência de jogo”. 

Vitor Martins, diretor da Razer América Latina. Foto: Divulgação

A exemplo da Twitch, a Razer também se lançou no acirrado mercado de celulares. Após comprar a startup Nextbit, em janeiro de 2017, a empresa colocou à venda o Razer Phone, um dos pioneiros do ainda incipiente segmento de celulares gamers. Estão lá todas as excentricidades dos computadores, como nomes intimidadores e luzes LED, bem como outros diferenciais mais práticos, como componentes turbinados e otimizações de software que permitem rodar títulos pesados com mais suavidade.

Os e-sports também passam por um momento especial no país, mas ainda há muito espaço para crescimento. O diagnóstico é de Fernanda Domingues, CEO da F D Comunicação, empresa especializada em assessorar e promover empresas do setor de games. Desde 2012, quando a Riot trouxe ao Brasil seu League of Legends, o MOBA (multiplayer online battle arena) mais popular do mundo, Domingues viu o mercado amadurecer e chegar ao tamanho atual: “Há uns cinco anos, os e-sports tiveram um ‘boom’ lá fora. Segundo a Newzoo, o Brasil é o terceiro maior público de e-sports — atrás de Estados Unidos e China. Acredito que o futuro [no país] é muito bom”. Ela acredita que em três anos estaremos em pé de igualdade com os mercados mais maduros.

Para Domingues, é importante que as empresas de olho nesse filão invistam, porque só assim é possível colher frutos da expansão esperada para o setor. “As empresas que realmente investiram no Brasil estão colhendo o que plantaram”, diz, citando como exemplos a Riot e a Garena. Para ela, os números do mercado brasileiro, com milhões de gamers, boa parte deles interessados em e-sports, podem turvar a visão dos estrategistas. “Esses números impressionam as empresas lá fora, aí elas vêm achando que o lucro será imediato”. Jogando ou assistindo, em computadores caríssimos nas arenas lotadas de e-sports ou na sala de espera do consultório médico, por puro prazer ou com milhões de reais em jogo, fato é que já são muitos os gamers espalhados pelo mundo — no Brasil, 66% da população, segundo a Pesquisa Game Brasil de 2019. “Acho muito poderoso pensar que uma criança que venha de um lugar com menos recursos, com um celular e um jogo ela pode chegar onde bem entender”, diz Sassaroli, do YouTube. “Games são algo muito sério, muito grande, interessante. Eu não queria estar em outro lugar”.