CEO do Facebook Mark Zuckerberg
CEO Mark Zuckerberg no Encontro de comunidades do Facebook (FCS) 2019. Foto: Facebook/Divulgação/Arquivo
Tecnologia

Um país dependente do WhatsApp e a quebra de monopólios

De possível puro diversionismo à falha brutal que escancarou o quanto o Facebook precisa ser regulado — e o quanto os apps, todos, precisam conversar entre si

Alguém inclinado a teorias da conspiração poderia dizer que a queda catastrófica dos serviços do Facebook na última segunda-feira (4), que deixou o próprio Facebook, Instagram e WhatsApp fora do ar e os funcionários da empresa do lado de fora dos escritórios, foi puro diversionismo.

Na véspera, Frances Haugen, ex-gerente de produtos do Facebook que se rebelou e está revelando segredos internos da empresa, veio a público na TV norte-americana e abriu (ou agravou) mais uma crise no Facebook.

Não é o caso, ou assim acredito. E nem é pelos milhões de dólares em receita que o Facebook deixou de ganhar ou pelo teor das revelações de Frances, que são de fato graves e devem ter consequências sérias.

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Para o nosso teórico da conspiração, o apagão do Facebook teria sido uma manobra interna, proposital, para desviar a atenção do público da artilharia pesada de Frances. Na noite de segunda, quando o acesso estava voltando ao normal, Mark Zuckerberg, cofundador e CEO do Facebook, desculpou-se pelo fiasco e disse que “sabe o quanto vocês confiam em nossos serviços para se conectarem com as pessoas”, mensagem repetida também nos comunicados à imprensa. “O Facebook é tão ruim assim?”, argumentaria nosso hipotético conspirador, “Veja como o mundo seria sem ele, então”.

O problema com esse raciocínio é que o evento escancarou, também, a urgência com que o Facebook precisa ser regulado, e de tal forma que não agrade o próprio Facebook. É aqui que qualquer teoria da conspiração desmorona.

Na segunda, a indisponibilidade do Facebook, em especial a do WhatsApp, abriu o Jornal Nacional da TV Globo, o noticiário televisivo mais importante do país, e foi manchete em todos os sites jornalísticos. Em um país com o governo errático que o Brasil tem e uma produção industrial de escândalos dos mais diversos, a preferência quase unânime de editores de veículos distintos em destacar o WhatsApp reflete o papel estrutural que esse aplicativo tem hoje nas vidas de todos nós.

Foram os impactos da falta do WhatsApp que deram o tom da cobertura noticiosa. O G1, por exemplo, explicou como a pane no app afetou 175 mil restaurantes. Não se trata apenas do recebimento de pedidos: negociações com fornecedores e comunicação interna passam pelo app do Facebook. E mesmo na hora de vender, a flexibilidade do WhatsApp não é fácil de ser replicada — o telefone, “plano B” neste cenário, em muitos casos não deu conta da demanda.

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Restaurantes não são exceção. Grandes empresas, profissionais liberais, consultórios médicos e até órgãos governamentais adotam o WhatsApp como ferramenta de comunicação. É o terror dos departamentos de tecnologia: uma tecnologia alheia, não homologada nem auditada, que sequer é adequada à função, mas que ainda assim é usada indiscriminadamente pelos colegas apenas porque… bem, todo mundo a usa para tudo, por que não para isso também?

Pesquisas apontam que o WhatsApp está presente em até 99% dos celulares conectados à internet no Brasil. Nada é impossível, mas pode-se dizer que é no mínimo muito difícil fechar essa caixa de Pandora a curto ou médio prazo. E, convenhamos, ainda que outro aplicativo, como o Telegramque ganhou 70 milhões de novos usuários só na segunda —, tomasse o trono do WhatsApp, o problema continuaria. Seria trocar seis por meia dúzia.

Há muitas maneiras de regular as grandes empresas de tecnologia, e cada uma delas carrega promessas e incertezas. Para essa “WhatsApp-dependência”, uma muito promissora é a da interoperabilidade obrigatória

Hoje, todos esses aplicativos de mensagens populares são redes fechadas: para falar com alguém no WhatsApp, é preciso estar no WhatsApp, por exemplo. (A exceção é o Messenger do Facebook, que conversa com o Instagram; ambos os aplicativos são do Facebook, porém.) Não precisa ser assim.

Se aplicativos de mensagens trabalhassem com formatos abertos e interoperáveis, abriria-se uma enorme janela de oportunidades e de aumento da concorrência. Pense no e-mail: você pode usar o Gmail ou o Hotmail, e a maioria de fato usa um desses dois serviços, mas nada impede que alguém opte serviços de empresas menores ou mesmo crie seu próprio servidor de e-mail e consiga conversar com todo mundo. E quando um provedor de e-mail cai, o restante da rede continua funcionando, porque tal resiliência é uma característica de redes, coisa que o WhatsApp (ou o Telegram, ou o Signal) não é.

Li muitos “engenheiros de obra pronta” argumentarem nas redes sociais que gerir negócios exclusivamente pelo WhatsApp é um risco porque, “veja só, quando o WhatsApp sai do ar, sua empresa sai do ar”. Esse é o menor dos problemas. Quantas vezes o WhatsApp sai do ar em um ano? Se entrarmos no debate pautados pela (in)disponibilidade, o Facebook — e as demais big tech — ganharão de lavada. Eles têm dinheiro e cérebros brilhantes para montar infraestruturas espetaculares. Falhas como a que derrubou o Facebook são raríssimas em empresas do porte do Facebook.

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A questão é mais profunda: é tornar um aplicativo proprietário — o WhatsApp, no caso —, mantido por uma empresa com histórico péssimo, repleto de decisões hostis, indiferença a problemas graves e práticas desleais, a espinha dorsal da comunicação de um país inteiro. Podemos fazer melhor. Devemos.

Não é difícil, ao menos tecnicamente. O próprio Facebook já nadou por essas águas. Nos primórdios, o Facebook Messenger funcionava em cima do protocolo XMPP — aberto, extensível e com a maioria, se não todos, os recursos que apps de mensagens modernos oferecem. O Gtalk, app pioneiro de mensagens do Google, outra big tech com sua cota de controvérsias, também era baseado no XMPP. Não gosta do XMPP? Existem outros protocolos similares, como o Matrix

Em sua sanha monopolista, o Facebook abandonou o XMPP em algum momento do passado em prol de um protocolo fechado, que só ele entende e pode usar. Uma regulação bem feita poderia começar por aí: liberando os dados, as conversas e os contatos das pessoas para elas usarem onde e com o app que quiserem. Hoje, seus dados, conversas e contatos são reféns do WhatsApp, reféns do Facebook.