Representação de criptomoedas.
Representação de criptomoedas. September 28, 2021. Foto: Jakub Porzycki/NurPhoto/Shutterstock (12496465a)
Tecnologia

Na Web3, o rei está nu

Dos mesmos especuladores que garantem que as crioptomoedas nos libertarão (do quê?) e que NFTs salvarão a arte (de quem?), vem aí a Web3, um novo ambiente digital que revolucionará a internet e o modo de fazer negócios em rede. Ou assim estão nos prometendo

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Em um texto publicado na Future, o braço editorial da firma de capital de risco a16z, fundo do Vale do Silício, Chris Dixon definiu a Web3 como uma combinação entre “a descentralização e o ‘ethos’ guiado pela comunidade da Web1 com as funcionalidades modernas e avançadas da Web2”.

A suposta grande sacada da Web3, grande o bastante para justificar a nova numeração, é a descentralização das propriedades digitais e a tokenização da economia, ou seja, uma extrapolação totalizante da lógica das criptomoedas (blockchain) ao ambiente digital.

Gente como Dixon alega que as plataformas digitais, ao resolverem os problemas da Web1 e se tornarem dominantes, passaram a ter incentivos contrários aos dos usuários e parceiros comerciais a quem deveriam servir ou, no mínimo, não serem hostis.

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Ao distribuir a propriedade dessas plataformas, ou das suas equivalentes criadas no novo paradigma, e garanti-la com a blockchain, a Web3 neutralizaria tais incentivos perniciosos, aflorando o que há de melhor na humanidade.

“Na Web3, propriedade e controle são descentralizados”, nos garante Dixon. “Usuários e construtores podem ter pedaços dos serviços de internet ao terem tokens, tanto não fungíveis (NFTs) quanto fungíveis.”

Tudo muito lindo, veja como essas pessoas cheias de ideais virtuosos querem uma internet melhor para todo mundo! Talvez, mas até o momento a Web3 é só uma grande promessa feita por gente que, na real, se beneficiaria horrores com a consolidação da Web3.

Aliás, a própria consolidação da Web3 depende da crença generalizada de que ela está logo ali e trará benefícios inimagináveis à coletividade quando chegar.

Como posto pelo pesquisador e escritor bielorrusso Evgeny Morozov, a Web3 é um mapa para terras que ainda não existem. Sem surpresa, essas terras já estão demarcadas e prontas para serem exploradas comercialmente pelo pessoal que promove a Web3 como a oitava maravilha do mundo — sem exceções, investidores, empreendedores e especuladores.

“O modelo de negócio da maioria das iniciativas na Web3 é auto-referencial ao extremo, alimentando-se da fé das pessoas na inevitável transição da Web 2.0 para a Web3”, escreveu Evgeny em um ótimo ensaio.

Não tem nada de substancial na Web3, uma inconveniência enorme que, não por acaso, costuma ser varrida para debaixo do tapete pelos seus proponentes.

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A Web1 trouxe uma rede global interconectada, acessível e aberta a todos. A Web2 — ou web 2.0, como definiu Tim O’Reilly em meados dos anos 2000 —, facilidades que permitiram expandir aquelas vantagens da fase anterior à maior parte da humanidade. A Web3 simplesmente troca essa infraestrutura por uma mais complexa, lenta e cara (pois blockchain) apenas porque… por quê?

Por mais erráticas que empresas como Google e Facebook sejam em suas posturas éticas e decisões de negócio, é inegável que elas resolveram muitos problemas e que, nisso, potencializaram novas tecnologias e os usos possíveis da internet. A Web3 passa longe disso. Todo o diferencial da Web3 é absolutamente inútil em termos práticos na imensa maioria dos casos – na verdade, até atrapalha.

Em um interessantíssimo (e bombástico) post em que descreve suas primeiras impressões da Web3, Moxie Marlinspike, co-fundador do aplicativo de mensagens Signal, foi taxativo quanto ao argumento delirante da descentralização e além. Para ele, já hoje tal argumento é mais um artifício marqueteiro do que característica útil.

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Alguém que queira construir algo na Web3 — por ora, leia-se lançar qualquer coisa na blockchain Ethereum — precisa passar por plataformas centralizadoras, startups como OpenSea, Rarible, MetaMask e Rainbow, condicionando seus aplicativos e tokens a esses intermediários. Sem isso, fica tudo muito difícil, caro e lento. Inviável. Se for assim, melhor ficar na boa e velha Web2.

“Quando você pensa a respeito, a OpenSea seria, na real, seria muito ‘melhor’ num sentido imediatista se todas as partes da Web3 sumissem. Ela seria mais rápida, mais barata a todos e mais fácil de usar”, resume Moxie.

Sem a blockchain — ou seja, fora da Web3 —, a OpenSea seria apenas um marketplace vendendo arquivos JPEG de desenhos de macacos e outras bobagens do tipo cujo valor intrínseco é irrisório ou nulo. É a insanidade dos NFTs elevada ao quadrado, esparramada por tudo. A Web3 é a roupa invisível do rei nu.

A OpenSea, aliás, é um marketplace de NFTs. Foi fundada em 2017 e está avaliada em US$ 13,3 bilhões. Entre seus investidores está a a16z, de onde nosso amigo Chris Dixon é sócio. Não é à toa que há tanto interesse deles em transformar o mundo das criptos — Web3, criptomoedas, NFTs — em uma história convincente. Muito dinheiro está apostado nessa narrativa.

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A a16z também investiu pesado na Coinbase, uma das maiores exchanges de criptomoedas do mundo. Marc Andreessen, co-fundador e sócio da firma, tem um assento no conselho da Coinbase.

Faço um desafio: encontre alguém entusiasta de criptomoedas, NFTs e Web3 que não esteja comprado de alguma forma nessas coisas, ou seja, que não tenha investido nelas. (Boa sorte tentando achá-lo).

Se a essa altura você ainda tem dificuldade em entender o que é Web3, não se culpe nem se preocupe. A abstração faz parte do jogo e a Web3 é o que for preciso ser para que seja alguma coisa afinal.

Na prática, as diferenças entre a Web3 e a internet que temos hoje são tangenciais e irrelevantes para maioria das pessoas. Mas se alguém insistir e te questionar o que é Web3, diga que é a internet como a conhecemos, mas com blockchain no meio. Em última instância, é somente isso mesmo.

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