A norte-americana Southwest Airlines é considerada a primeira companhia aérea low-cost do mundo ou, pelo menos, a primeira que obteve êxito a partir de um modelo bem diferente das tradicionais, baseado em redução de custos, menos serviços aos passageiros e baixas tarifas. A empresa revolucionou o mercado a partir dos anos 1970. O efeito Southwest se alastrou pela Europa mais de duas décadas depois com as famosas Easyjet e Ryanair. E foram precisos mais de 40 anos para chegarem com força à América Latina.
O continente assiste a uma expansão no número de aéreas de baixo custo. Aerobus, Easy Fly, Flybondi, JetSMART, Norwegian, Sky, Viva, Volaris, Wingo. A lista é considerável. Não se trata exatamente de um boom, mas elas têm se espalhado rapidamente e impactado alguns dos principais países latino-americanos, abocanhando fatias significativas do mercado que antes era dominado pelas companhias aéreas tradicionais.
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Na Colômbia elas representam 21,3% do mercado doméstico. Logo abaixo, no Chile, são expressivos 40,1%. Na Argentina, que viu a primeira low cost decolar em 2018, elas já têm 19% de participação. No México, onde elas chegaram um pouco mais cedo, são mais de 70%. Não é pouca coisa quando dividem os céus com empresas do tamanho de Aerolíneas Argentinas, Aeroméxico, Avianca ou Latam.

Esse salto não foi dado ao tentar copiar práticas de Southwest, Easyjet ou Ryanair. A questão é que o mercado latino-americano tem suas peculiaridades e entraves mais profundos que, aos poucos, começam a ser superados, seja pela própria insistência das companhias ou por uma participação mais ativa dos governos federais na expansão do mercado da aviação.
“As companhias aéreas da América Latina sempre usaram as norte-americanas e europeias como exemplo, mas nunca conseguiram se assemelhar a elas. As latino-americanas têm uma série de barreiras que não as permitem chegar ao mesmo desenvolvimento no curto ou médio prazos. Basicamente essas barreiras são impostos e taxas aeroportuárias”, explica o líder de aviação e turismo da KPMG para a América Latina, Eliseo Llamazares.
Cada país tem seu pacote de obstáculos. Não há uma uniformidade de regulamentação ou de custos para a indústria entre cada nação, o que gera avanços dessincronizados.
México e Chile estão mais evoluídos, Colômbia e Argentina dando os primeiros passos e o Brasil ainda em compasso de espera com recentes alterações na legislação que podem atrair as low costs para o mercado doméstico.
“É improvável que a América Latina como um todo veja níveis de penetração de companhias aéreas low cost como observado em outros grandes mercados como Estados Unidos e Europa. No entanto, devido ao baixo nível de uso do modal aéreo e as altas tarifas atualmente adotadas, há um pacote distinto de oportunidades para o aumento da penetração de low costs na região”, analisa o diretor da ICF Aviation, Carlos Ozores.
A principal estratégia adotada pelas companhias de baixo custo na região tem sido buscar os passageiros que usam o transporte terrestre e ainda não viajaram de avião. Dessa forma não precisam, necessariamente, concorrer diretamente com as empresas tradicionais. Ao apontarem para esse público, as low costs desmistificam o transporte aéreo como um modal voltado para os mais ricos. E, de quebra, ainda não precisam lidar com questões comportamentais de quem está acostumado a voar nas empresas tradicionais, como pagar pelo despacho de bagagem, fazer check-in presencial ou escolher o assento no avião.
As low costs não criam mercado do nada. Elas pegam um mercado que já existe, como o dos ônibus, e mudam o modal dos passageiros
Carlos Ozores, diretor da ICF Aviation.
“O objetivo das low costs não é fazer com que os passageiros das legacy [tradicionais] viajem nas low costs. São tipos de passageiros diferentes com motivações distintas. Aí está o êxito das companhias low cost, de criar demanda”, reforça Llamazares.
O impacto das decisões de governo
Não existe companhia aérea low cost sem um ambiente regulatório alinhado às práticas de tais empresas. O exemplo mais recente é o da Argentina. Ao assumir a presidência em dezembro de 2015, Mauricio Macri liderou um projeto chamado Revolución de los aviones. A ideia foi desregulamentar o setor aéreo para fomentar o turismo no país. Concedeu novas rotas, atraiu novas companhias aéreas, investiu na infraestrutura aeroportuária e acabou com o piso tarifário.
Diante dessas medidas, a primeira companhia low-cost a desembarcar na Argentina foi a Flybondi, com o voo inaugural em janeiro de 2018. Na sequência vieram Norwegian, ainda em 2018, e JetSMART, no ano seguinte – em comum, todas com recursos financeiros de grupos internacionais. Em menos de dois anos, juntas, transportaram mais de 3 milhões de pessoas. Isso significa que uma de cada cinco pessoas que viajam de avião no país o faz por uma empresa de baixo custo. Segundo dados do Ministério do Transporte argentino, nesse período, entre 15% e 20% dos passageiros fizeram a primeira viagem no modal aéreo.
“O impacto é que o mercado doméstico cresceu enormemente desde 2016. Um número positivo é que a Aerolíneas Argentinas, sempre protegida pelos governos, inclusive sendo contra o crescimento do mercado, tem menos participação de mercado hoje, mas transporta mais passageiros. Outro impacto positivo é a crescente penetração do transporte aéreo, coisa que não havia ocorrido na Argentina antes”, observa o advogado especialista em direito aeronáutico e ex-executivo da Aerolíneas Argentinas, Diego Fargosi.
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O ponto principal para a entrada das low costs na Argentina foi o fim do piso tarifário. Antes, havia um valor mínimo que as companhias aéreas poderiam cobrar para emitir uma passagem. Isso impossibilitava tarifas, por exemplo, de 1 dólar, como a Flybondi comercializa em algumas oportunidades.
“O piso tarifário era uma medida protecionista para a Aerolíneas Argentinas, mas também para o setor de transporte de ônibus. Com essa eliminação, um voo de Buenos Aires a Córdoba, por exemplo, sai apenas 20% mais caro do que o transporte terrestre”, exemplifica Eliseo Llamazares, da KPMG.
Ao depender das ações do governo, o mercado fica sujeito às trocas de poder. Os avanços comemorados pelas companhias aéreas low cost na Argentina podem ser colocados em xeque pelo novo presidente Alberto Fernández, eleito no fim de outubro. A vice dele é a ex-presidente Cristina Kirchner, que liderou o país entre 2007 e 2015, e alinhada à uma política mais protecionista.
Nesse cenário, já é flagrante a apreensão das empresas de baixo custo. “Há preocupação entre as low costs sobre um novo governo e o papel que vai ter a Aerolíneas Argentinas e os sindicatos da empresa que historicamente têm sido o principal motivo de polêmicas na indústria aerocomercial e que, em alguns momentos, trabalharam diretamente para que o mercado não fosse ampliado”, opina Fargosi.
O analista Carlos Ozores, da ICF Aviation, espera que as políticas criadas no governo Macri não sejam alteradas pelo novo presidente. A favor da manutenção está o fato de que as low costs criaram novas rotas e transportaram pessoas que nunca haviam voado em um avião, sem necessariamente enfraquecer a Aerolíneas Argentinas. Ele adiciona, porém, um aspecto que pode ter impacto sobre o setor. “Tudo vai depender do câmbio, se vai piorar ou se o governo vai buscar uma estabilidade cambial. É difícil sustentar um negócio, especialmente em um mercado dolarizado”, diz.
Aeroporto El Palomar: de exemplo para a América Latina a polêmica
Dentro do modelo low cost consagrado pelas companhias europeias está a utilização de aeroportos secundários, algumas vezes mais afastado do centro das cidades, porém mais práticos e baratos para as empresas. É assim, por exemplo, com Beauvais a 80 quilômetros de Paris ou Girona a 90 quilômetros de Barcelona. Para o passageiro, é melhor uma passagem barata do que a facilidade de se alcançar a área central.

Na América Latina, a realidade é diferente e praticamente não há aeroportos que sejam amigáveis às empresas de baixo custo. “Os aeroportos secundários, que apresentam uma flexibilidade muito maior a custos mais baixos. Aqui as low costs precisam operar nos mesmos aeroportos que as legacy”, comenta Llamazares.
Há um único aeroporto que atende às necessidades das low costs na região: El Palomar, localizado a 14 quilômetros do centro de Buenos Aires, distância cerca de cinco quilômetros maior que do Aeroparque, principal terminal doméstico da cidade. O aeroporto funcionava apenas como uma base aérea militar, mas foi adaptado por incentivo do governo argentino em parceria com a Flybondi para receber voos comerciais.
El Palomar tem um pequeno terminal e outro menor ainda, satélite, e dois pátio para até 11 aeronaves. Nada de pontes de embarque ou muitas opções de comércio ou alimentação. No entanto, isso é mais que suficiente para Flybondi e JetSMART, empresas que operam no local – a Norwegian, outra low cost que voa na Argentina usa o Aeroparque como base em Buenos Aires. Entre janeiro e setembro de 2019, passaram por El Palomar mais de 956 mil passageiros.
Mas o que era uma solução se transformou em polêmica. Por estar localizado em uma região residencial, recebeu críticas e foi alvo de protestos, o que acabou indo parar na Justiça. Em razão disso, desde 26 de setembro, El Palomar opera com restrições de pousos e decolagens entre 22 horas e 7 horas, decisão que afetou a programação de voos da Flybondi e da JetSMART. De acordo com o Ministério dos Transportes da Argentina, 30% do total de passageiros das companhias chegavam ou saiam do aeroporto nessa faixa horária. O próprio governo argentino recorreu da decisão judicial e aguarda uma definição sobre o caso.