Quando a chilena Sky pousou no Rio de Janeiro em novembro de 2018, o Brasil iniciou uma nova era em sua aviação comercial. Um ano após a chegada da primeira companhia aérea low-cost, outras empresas seguiram o mesmo caminho e mais estão por vir. Entretanto, o que se vê até agora no maior país da América Latina é um movimento de fora para dentro e não necessariamente a existência de um ambiente saudável que ofereça às empresas nacionais um baixo custo na operação e aos passageiros as baixas tarifas tão desejadas.
Desde 2017 quando a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) liberou mudanças da regulação do transporte aéreo, com a permissão da cobrança por marcação de assento e despacho de bagagens, por exemplo, o debate em torno do assunto esquentou. De um lado as companhias aéreas comemoraram e garantiram que o preço das passagens diminuiria, e de outro os passageiros e órgãos de defesa do consumidor condenaram o que poderia resultar no encarecimento das tarifas.
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Anos depois, a questão parece estar resolvida, ao menos por enquanto. Isso graças a uma Medida Provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em junho de 2019 que aumentou a participação de capital estrangeiro nas companhias aéreas de 20% para 100% e à manutenção do Congresso Nacional, em setembro, do veto presidencial ao item que proibia a cobrança para despachar malas. Esses dois pontos são chave para permitir que companhias aéreas low-cost se instalem e operem no mercado doméstico brasileiro. Mas falta mais.
“Ainda não vemos condições iguais a outros mercados para que as low-costs prosperem. A aprovação do capital estrangeiro e a permissão para que as companhias aéreas cobrem pelo despacho de bagagem, são apenas um princípio”, Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos que acompanha de perto o setor aéreo.
O grande entrave ainda são os custos da aviação no país. Os dois pontos principais são os impostos estaduais sobre o combustível e o real desvalorizado frente ao dólar.
O Brasil é o único território do mundo que tributa regionalmente o querosene de aviação, um insumo que representa hoje cerca de 33% dos gastos das companhias aéreas, segundo dados do setor – a média de mercados mais maduros como Estados Unidos e Europa fica nos 22%. Além disso, aproximadamente 52% dos custos da indústria são atrelados ao dólar, encarecendo a operação.
“O QAV [querosene de aviação] ainda é uma distorção, majoritariamente pela existência do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] e pela fórmula de precificação da Petrobras, que cobra em dólar um produto que é produzido em Real”, explica o presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), Eduardo Sanovicz. Acordos entre companhias aéreas e governos estaduais têm reduzido a alíquota do ICMS sobre o combustível, mas o setor acredita que a questão só deve ser solucionada totalmente a partir de uma reforma tributária que acabe com a cobrança.
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Outro aspecto que a ABEAR coloca como um dificultador é a judicialização de questões entre passageiros e companhias aéreas.
No Brasil há uma diferença enorme de regulamentos ligados ao consumidor, imputando às companhias aéreas responsabilidades que não são delas em nenhum outro lugar do mundo”, diz Sanovicz
EDUARDO SANOVICZ, presidente da ABEAR.
Segundo a indústria, esse embate gerou R$ 150 milhões de custos às empresas em 2018, valor que acabou sendo repassado ao preço do bilhete. Na conta estão, por exemplo, ações de danos morais por atrasos e cancelamentos de voos decorrentes de condições meteorológicas adversas.
O impacto das low-cost estrangeiras no país
Além da Sky, que iniciou em 2018 voos entre Santiago e Rio de Janeiro e São Paulo, outras duas companhias aéreas low costs estrangeiras passaram a voar para o país. Em março deste ano, a Norwegian estreou na rota Londres-Rio de Janeiro e a argentina Flybondi começou a ligar Buenos Aires ao Rio em outubro. Em dezembro será a vez da JetSMART com voos a partir de Santiago para Salvador e em 2020 com rotas para São Paulo e Foz do Iguaçu.
A possibilidade de cobrar pelo despacho de bagagem foi fundamental para que essas empresas chegassem ao país. O modelo low-cost não existe sem esse tipo de artifício. Além disso, as aéreas estrangeiras se beneficiam do fato de que em voos internacionais o combustível não é taxado como no mercado doméstico. “Essas low-costs jamais estariam voando para o Brasil se não mudasse o sistema de cobrança”, afirma Sanovicz.
Mesmo operando somente rotas internacionais inicialmente, as aéreas estrangeiras podem ajudar, inclusive, na adaptação do passageiro às novidades no setor. Nem sempre o cliente que despachou tantas vezes a bagagem sem custo consegue compreender que ele já pagava para levar a mala no porão, um valor que estava injetado na tarifa. Ao ver preços mais baixos, porém, pode ser convencido de que pode ser uma boa ideia.
Com o acalorado debate sobre o assunto, a princípio, o passageiro brasileiro demonstra sinais de que pode se acostumar. Desde que a passagem seja mais barata.
Hoje estamos passando de 60% dos bilhetes sem o despacho de bagagem. E quase sete entre dez passageiros sabem exatamente como se comportar e sabem o que está acontecendo.
EDUARDO SANOVICZ, PRESIDENTE DA ABEAR.
E se preço é importante, a chegada dessas empresas demonstrou ter impactado o setor, jogando para baixo o preço das tarifas. De acordo com dados do Kayak, ferramenta de planejamento de viagens que faz parte da Booking Holdings, houve uma redução média de 23% na tarifa nas rotas que a Norwegian e a Sky fazem para o Brasil. “Os preços podem ter diminuído tanto pela oferta de passagens baratas das low costs como por uma revisão de estratégia de companhias tradicionais, que podem estar baixando seus preços de base e oferecendo voos com menos serviços para continuarem competitivas”, comenta o gerente de operações do Kayak no Brasil, Eduardo Fleury.
O desafio é transportar essa redução para o mercado doméstico. Isso dependeria da chegada de novas companhias, possivelmente estrangeiras, que trouxessem ao país o modelo de baixo custo. O grupo Globalia, que acaba de vender a companhia espanhola low-cost Air Europa ao grupo IAG, dono da British Airways e da Iberia, demonstrou interesse em operar no mercado interno brasileiro. Logo que foi assinada a Medida Provisória que liberou 100% de capital estrangeiro, o grupo requisitou a concessão para explorar o serviço regular de passageiros, o que foi prontamente autorizada pela ANAC. A Globalia ainda não divulgou os planos para o Brasil nem se pretende adotar modelo low cost no país.

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O analista Ilan Arbetman avalia como positiva a possível vinda do grupo europeu ao país, o que poderia atrair outras empresas. “Precisa começar. E quanto mais cedo, melhor para todos, especialmente para o consumidor que ganha mais opções. Precisamos das companhias aéreas se mexendo”, diz. “Podemos crer que no curto a médio prazo, com o estabelecimento de mais companhias aéreas low cost no Brasil, com a transformação e adequação da aviação aos novos tempos, o mercado tende a crescer exponencialmente”, completa.
O presidente da ABEAR, por outro lado, é mais cauteloso. “Creio que o mercado está completamente aberto, não há nada de legal ou institucional, que impeça a instalação de novas empresas, mas isso só vai ocorrer se houver retomada do crescimento econômico. Com economia parada, câmbio subindo e custos em dólar, o que aconteceu neste ano foi que uma empresa [Avianca] quebrou”, adverte.
Na mesma linha segue o presidente da Associação da América Latina e do Caribe de Transporte Aéreo (ALTA), Luiz Felipe de Oliveira. Em entrevista ao FlightGlobal, disse que o mercado brasileiro não é competitivo para as companhias aéreas e que as low-costs “precisam ter confiança legal de que o mercado vai continuar como está e não terá nenhuma mudança no futuro próximo.”